
“Então é o ‘Caos’, e o que você fez? O ano termina e nasce outra vez…”
Estávamos ainda no primeiro trimestre de 2020 e o mundo parou pelo covid-19, tão microscópico quanto destruidor. Conseguiu parar o imparável, o admirável mundo novo (Huxley 1932), mostrando sua sombra e quão cruel pode ser. Rendeu a humanidade com as amarras do fim sem ao menos ter começado, adiou e cancelou pacotes de planos e sonhos que se foram para a angustiante sala de espera da vida sem saber quem será o próximo a ser chamado e o destino que ele terá. Há bem pouco tempo precisava chegar o fim de ano para pensar no que se fez e começar outra vez. Agora 2020, ensina que o tempo não está preso a datas comemorativas, calendários e cronogramas anuais, amplia-se a consciência da intemporalidade onde qualquer dia do ano podemos ter que recomeçar do zero, desapegar do plano A e correr para ativar ou criar o plano B, C e quantos forem necessários para prosseguir. Firma-se mais uma vez que não é com a força que vencemos, mas sim com a forma que reagimos ao que nos acontece, como a água contorna as pedras também podemos contornar situações difíceis no lugar de resistirmos a elas. Cada dia fica mais claro que no mundo real não temos super-heróis sozinhos capazes de nos salvar dos vilões do planeta, mas vencemos com a união de forças e sacrifícios coletivos os algozes do sistema. Ficamos cada vez mais certos da nossa impotência e descontrole do mundo. O jogo da vida quebra nossa mania de controle e onipotência, confronta a ditadura das ideologias capitalistas e não se submete aos nossos projetos e metas pessoais. Entendo que por algumas razões foi em nosso século que desencadeou essa dor imensurável, mas atente-se que não é a primeira vez que o mundo sangra, só está acontecendo de novo. Tanto é que o covid é 19, isso é porque já teve outro antes dele e pode se repetir em outro ano mais para frente.
Não falamos sobre o passado, preferimos excluir os capítulos tristes e evitar olhar o que foi para não sofrer, por isso a história e as dores repetem-se e se perpetuam em novas versões, porque não sabemos olhar e honrar os milhões que perderam suas vidas para nos ensinar que o mundo não deve girar em torno de um ser e do poder, mas quando isso acontece milhares morrem para manter a vaidade de alguns. Vou dar um exemplo trágico: na idade média, trinta e duas mil pessoas foram queimadas e assassinadas acusadas de heresia, isso aconteceu por ordem da inquisição papal de Gregório IX. Não satisfeito, ele mandou dizimar barbaramente todos os gatos pois associou os bichanos a culto aos demônios. O que essa história tem com a pandemia atual? Pois bem, na falta dos gatos multiplicaram-se os ratos que trouxeram a bactéria que provocou a peste bubônica, conhecida como a peste negra que dizimou duzentos milhões de pessoas! (Os que mataram aqueles gatinhos nem imaginavam que estavam cavando a própria sepultura). “Isso aquela emissora não fala”, e nem nós. A omissão e ignorância dos fatos tem um preço alto. Não podemos deixar que a morte bárbara de nossos antepassados seja em vão, devemos enterrar os mortos mas não a história deles, o preço da exclusão é que a história se repete até que olhemos para ela. Ao localizarmos a origem das tragédias e aprendermos com elas, estas não se perpetuam com a repetição dos mesmos erros. Nesta música de John Lennon que citei no início do artigo, cantada incessantemente por Simone nas festas natalinas, ele nos faz cantar em seu coro a tragédia de “Hiroshima, Nagasaki, Mururoa…”, que são cidades que sofreram com ataques ou foram palco de testes nucleares. Lennon insere a dor na bela canção natalina de forma subliminar, fazendo-nos lembrar que as dores passam e as festas também, a vida é feita de luz e sombra, dor e prazer, festa e luto. Que a impermanência da vida não nos surpreenda mais, que a dor nos transforme em melhores do que éramos antes e que nos lembremos disso para sempre, amém.
Edilene Nassar é psicóloga, professora, palestrante e especialista em inteligência emocional. Contatos pelo (14) 98149-7242 ou edilenenassar@hotmail.com.