Visitar uma escola vazia neste período de pandemia é se submeter a um rito que dói no corpo e na alma. O silêncio impera mesmo sem dar a mínima importância ao fato de ter, momentaneamente, dominado os espaços que pertencem verdadeiramente aos sons, movimentos, cores, às músicas e às múltiplas emoções, sensações, memórias e identidades. Desinteressada em tirar proveito dessa conquista efêmera, a quietude parece implorar pela volta da vida, em apelos que podem ser ouvidos distantes.
O silêncio sabe, afinal, que a escola não é o seu lugar. A sua presença anula a existência desse ambiente sagrado. Ao não possibilitar a vazão dos sentimentos, ao calar as vozes dos desejos, das necessidades e das sensações dos indivíduos, o silêncio torna impossível que a sociedade, por meio das manifestações críticas, reflexivas e criativas, se transforme.
Nessa suposta consciência de seus papéis e lugares, ao perceber que a pandemia de Covid-19 aos poucos vai permitindo que a vida, ainda cautelosa, volte à marcha, o silêncio respeitoso arruma as malas no aguardo de uma iminente partida. Porque silêncio e voz não ocupam o mesmo espaço. E quando o silêncio parte, quase nunca vai sozinho. Leva sempre em sua bagagem uma série de palavras ou histórias prontas para um dia escapar.
Se eu fosse o silêncio da escola, de certo que levaria comigo, em uma caixinha, o som de uma vassoura raspando o cimento lá longe no canto da quadra. Guardaria ainda o suspiro saudoso da faxineira, desprendido desde lá do fundo da alma. O toque em eco dos saltos da diretora que vagarosamente vai diminuindo enquanto ela segue conferindo sala por sala, espaço por espaço. Levaria também o som da batida do coração da última professora, que, cuidadosamente, recolheu seus pertences antes da partida, se despediu com um riso mudo do vigia triste às vésperas do trinco deslizar pela tranca do portão de ferro.
A seguir, juntaria tudo isso e deixaria para aqueles que um dia terão a difícil missão de contar a história dos nossos dias toda a verdade que nenhum silêncio no mundo pode apagar: o que os professores e os alunos fizeram depois que as abas dos portões da escola se encontraram? Explicaria esses movimentos não de forma didática, mas em pequenos relatos descompromissados com a grandiosidade dos feitos.
Ressaltaria primeiro a proeza dos estudantes. Agentes de um país em ebulição constante e que ainda não consegue dar conta de dirimir as discrepâncias existentes nas diversas esferas sociais, tiveram que encontrar forças na alma para manter a sanidade psicológica, buscar adaptação urgente às novas e desafiadoras formas de convivência familiar, atender às inovadoras maneiras de trabalhar e, principalmente, vencer os desafios de sustentar o interesse pela escola. Parte significativa desses estudantes, mesmo lutando contra uma correnteza brutal, não conseguiu, ou não conseguirá, chegar ao outro lado da margem, deixando para o futuro um resgate histórico que só se processará em conjunto: sociedade, família, escola e, principalmente, os responsáveis pela gestão das políticas públicas.
Depois, contaria o feito dos professores e da escola, que, embora fisicamente emudecida, não silenciou em nenhum momento. Assim como os estudantes, os educadores também precisaram reunir forças nunca vistas para as superações psicológicas, pois a escola foi reorganizada dentro das casas desses profissionais. Quartos, salas, cozinhas, quintais e garagens se transformaram em salas de aulas e laboratórios, e os universos que antes tinham caráteres particulares, privativos da escola, dos professores e dos alunos, tornaram-se públicos.
É criança que chora, a panela no fogo, o mais velho doente, o cachorro latindo, o cônjuge em reunião, o telefone que toca, o gás que acaba, a conta não paga, a conexão que cai. Fragilidades físicas, emocionais, tecnológicas e estruturais foram expostas, dignas da condição humana e, em contrapartida, muitas outras forças foram ressaltadas, virtuosidades dos grandes heróis. Esse humano teve que se reorganizar, aprender a trabalhar em casa, a estabelecer prioridades sem deixar de dar atenção a quem quer que seja.
Escreveria numa folha especial, com tinta e letras em destaque que, ao aceitarem os desafios propostos, os educadores ampliaram, numa escala vertiginosa, a própria capacidade de aprendizagem. De um dia para outro, no temor da corrente arrastar ainda mais seus alunos, se debruçaram para dar conta da utilização de novas ferramentas, principalmente as tecnológicas, para um esforço que vai muito além do domínio técnico. Aprenderam a nadar durante o próprio salvamento.
O uso dos novos recursos trouxe, em meio ao caos, a confusão, a desordem, o desarranjo das coisas, a necessidade de expandir a capacidade criativa. A habilidade criadora agora se tornou ainda mais necessária para que os processos aconteçam a distância, independentemente de onde as pessoas estejam e quais são as estruturas e os recursos que elas dispõem. O professor passou a ter que pensar de modo ainda mais rápido, a utilizar uma inteligência emocional para além do imaginado e a dispor de um espírito inventivo e solucionador que muitos antes não conheciam em tamanho e potencial.
Num tópico à parte, discorreria que o distanciamento pessoal, do ponto de vista físico, ampliou uma outra capacidade humana fortemente explicitada nas ações dos professores: o apoio mútuo ao aprendizado e a ampliação dos modos de trabalho em rede. Educadores se conectaram de maneira mais profunda e as partilhas das perdas, dos medos e, principalmente, das coragens e das conquistas se multiplicaram. Foram transformações que permitiram ao educador expandir ainda mais os olhares individualizados para cada um dos seus estudantes.
Estando mais pertos um do outro, professores e alunos, a escola também se aproxima ainda mais da sociedade e passa a compreender e atender com mais precisão grande parte das suas mais expressivas demandas. Na ameaça de uma sociedade cada vez mais líquida, como disse o filósofo polonês Zygmunt Bauman, as principais características da pós-modernidade são a rapidez e a imprevisibilidade de como as coisas e as relações se processam. O individualismo substituiu a solidariedade e a ideia de coletividade, esfriando as relações afetivas. Viva, a escola resgata conceitos de comunidade, restabelece laços de identidades entre as pessoas e devolve a sensação de segurança.
Quando a escola, sozinha, não dá conta de acolher essas demandas do indivíduo e da comunidade de maneira direta, ainda tem a perspectiva de o fazer por intermédio de seu principal papel social, que é o de proporcionar a transformação de pessoas, antes emudecidas, em cidadãos com poder de voz. No conceito de cultura do silêncio, construído pelo educador Paulo Freire, ao permitir que as pessoas pensem e falem, a escola também possibilita que elas se livrem da condição de oprimidas, emudecidas, sem ter sua voz ouvida e excluídas de decisões que dizem respeito à construção de regras determinantes de suas próprias vidas.
Por vezes, precisamos do silêncio para compreender, de fato, o que é essencial. Mas o silêncio atual vai partir. Será o primeiro a deixar a escola quando a tranca do portão ranger ao se abrir entusiasmado, raspando por entre os ferros na retomada das aulas. Curioso, e até mesmo desejado, o silêncio é bem provável que volte em alguns momentos. Como, por exemplo, entre um olhar ou um abraço cauteloso, entre uma lágrima e um riso, entre uma lembrança e outra daqueles que ali não estarão. Mas ele vai partir e lá na frente irá abrir a sua caixinha para um dia contar que, triste, não via a hora de ouvir de novo o mágico som do coração de um professor batendo apressado na garganta ao contemplar a euforia pulando em brilhos nos olhos de seus alunos!
Alessandro Gomes é coordenador de área do Senac Marília