O mais importante escritor brasileiro nasceu no Morro do Livramento e não poderia ser em um lugar melhor como referência da carência e poder de superação popular. Muita gente boa saiu dos morros e venceu dificuldades colossais para se destacar no Brasil e no mundo, mas Machado sem dúvida foi o maior de todos. Sobretudo por sua área de atuação: a literatura. E Machado não veio da periferia de um Rio que deixava de ser provinciano e flertava com grandes cidades como Paris apenas para ser um escritor que vendesse livros. Sua ambição era ser o maior, ter a obra mais erudita e instigante e estilisticamente perfeita, isso é claro se deu dentro de um processo gradativo. Machado cuidou de mostrar elegância e que se pode escrever o Brasil como sendo parte do mundo e não excludente como querem muitos até hoje. Como se o Brasil não pertencesse ao mundo e fosse uma coisa a parte. Um país que deve ficar no seu cantinho e falar só do seu jeito e de forma não muito elegante, Machado nunca viu o Brasil assim. Machado de Assis não acreditava no preconceito, não se preocupava com a cor da sua pele ao ponto de deixar se diminuir e logo afundar a mente em uma cacimba de limitação e mesquinhez. Machado se via participante da literatura universal e acreditava em seu potencial artístico literário acima de qualquer estigma. Via o Brasil como parte do mundo, digno como qualquer outro de abranger dramas humanos e sofisticação nas relações. E Machado escrevia do ponto de vista de personagens de grandes cidades. Diferente de Guimarães Rosa, que aliás pega pesado falando muito mal de Machado em uma entrevista na BBC. É óbvio que Machado em sua prosa não está falando do tipo brasileiro regional e não quer dar ênfase a pobreza brasileira. Guimarães Rosa é genial em sua abordagem do sertão contudo a narrativa de Guimarães é uma experiência que não se sustenta numa escala global de leitores, que nada tem a ver com literatura clássica, que é ainda a mais lida no mundo e sempre será. Mesmo os romances contemporâneos tem estruturas mais próximas a linguagem de Machado e tudo que se possa se parecer com Guimarães será visto como experimentalismo estilístico.
Um dos fatos cruciais para Machado se aproximar da leitura foi o fato dos pais saberem ler e escrever, ( o que era algo meio raro devido a origem mulata e posição social.) Ele teve desde pequeno interesse pelos livros e mesmo com pais analfabetos uma hora encontraria seu elo natural com a literatura. Machado de Assis nasceu em 1839. O pai era filho de escravos alforriados, enquanto a mãe era branca e portuguesa, e eram pobres realmente. Machado então é mulato, ou seja, um quase-negro que visto pela sociedade estava muito mais para o negro que para branco, e podemos imaginar então que Machado sofrera uma série de preconceitos no Rio da época, tanto mais quando começa a se destacar na literatura. O preconceito era tanto que depois de sua inevitável consagração o já velho Machado de Assis nomeado a presidente da recém fundada Academia Brasileira de Letras tinha em sua ficha nos documentos da instituição a definição de cor branca para sua pele.
O estudioso Francisco Achcar traça um plano resumidamente no estilo de Machado de Assis, escrevendo:
“[…] alguns dos pontos mais importantes da prosa narrativa machadiana:
· Machado é o grande mestre do foco narrativo de primeira pessoa, embora tenha exercido com mestria também o foco de terceira pessoa. Ele sabe colocar-se no lugar de um narrador hipotético e vivenciar todos os seus grandes problemas.
· Ao contrário dos realistas, que eram muito dependentes de um certo esquematismo determinista (isto é: pensavam que tudo, no comportamento humano, era determinado por causas precisas), Machado não procura causas muito explícitas ou claras para a explicação das personagens e situações. Ele sabe deixar na sombra e no mistério aquilo que seria inútil explicar. Foi justamente por não tentar explicar tudo que Machado não caiu na vulgaridade de muitos realistas, como Aluísio Azevedo. Há coisas que não se explicam, coisas que só podem ter descrição discreta. Nisso, Machado de Assis foi um grande mestre.
· A frase machadiana é simples, sem enfeites. Os períodos em geral são curtos, as palavras muito bem escolhidas e não há vocabulário difícil (alguma dificuldade que pode ter um leitor de hoje se deve ao fato de que certas palavras caíram em desuso). Mas com esses recursos limitados Machado consegue um estilo de extraordinária expressividade, com um fraseado de agilidade incomparável.
· A descrição dos objetos se limita ao que neles é funcional, ou seja, àquilo que tenha que ver com a história que está sendo contada. O espaço é singelo, reduzido, e as coisas descritas parecem participar intimamente do espírito da narrativa.
· Uma das maiores características da prosa de Machado de Assis é a forma contraditória de apreensão do mundo. Machado em geral apanha o fato em suas versões antagônicas, e isso lhe dá um caráter dilemático. É também uma forma superior e mais completa de ver as coisas. Machado tem os olhos voltados para as contradições do mundo.
· Chamamos aparência aquilo que aparece a nossos olhos, aquilo que primeiramente surge à observação; chamamos essência aquilo que consideramos a verdade, aquilo que é encoberto pela aparência. Mas o que tomamos por essência pode não ser mais do que outra aparência. O estilo machadiano focaliza as personagens de fora para dentro, vai descascando as pessoas, aparência atrás de aparência. Por isso, Machado é considerado grande “analista da alma humana”.
· A linguagem machadiana faz referências constantes aos estilos de outros grandes autores do Ocidente. Na maioria dos casos, essas referências são implícitas, só podem ser percebidas por leitores familiarizados com as grandes obras da literatura. Esse é um dos motivos de se poder dizer que o estilo de Machado é um estilo “culto” (pois ele faz uso da cultura e sua compreensão aprofundada exige cultura da parte do leitor). Costuma-se chamar intertextualidade a esse diálogo que se estabelece, no texto de um escritor, com textos de outros autores, do presente ou do passado. Machado de Assis foi um grande virtuose da intertextualidade.
· Em seus romances mais importantes, Machado de Assis pratica a interpolação de episódios, recordações, ou reflexões que se afastam da linha central da narrativa. Essas “intromissões” de elementos que aparentemente se desviam do tema central do livro correspondem a procedimentos chamados digressões. As digressões são, naturalmente, muito mais comuns nos romances do que nos contos, pois nestes a brevidade do texto não permite constantes retardamentos da narrativa. Nessas digressões, Machado é constantemente seduzido pelo impulso de falar sobre a própria obra que está escrevendo, isto é, faz metalinguagem, comentando os capítulos, as frases, a organização do todo. Embora também presente nos contos, esses elementos de metalinguagem são neles bem mais raros e discretos.
· Uma das características mais atraentes e refinadas de Machado de Assis é sua ironia, uma ironia que, embora chegue francamente ao humor em certas situações, tem geralmente uma sutileza que só a faz perceptível a leitores de sensibilidade já treinada em textos de alta qualidade. Essa ironia é a arma mais corrosiva da crítica machadiana dos comportamentos, dos costumes, das estruturas sociais. Machado a desenvolveu a partir de grandes escritores ingleses que apreciava e nos quais se inspirou (sobretudo o originalíssimo Lawrence Sterne, romancista do século XVIII). Na representação dos comportamentos humanos, a ironia de Machado de Assis se associa àquilo que é classificado como o seu grande poder ‘analista da alma humana’.”