Em um bar no centro de São Paulo, denominado Empório das Palavras, dois velhos conhecidos aparecem para um encontro marcado, sentando-se próximos à janela para melhor observar o movimento da metrópole. Um deles chama o garçom:
– Amigo, uma xícara de café, por favor! Preciso fumar. É permitido fumar neste estabelecimento?
O garçom chama o gerente que, ao ver os clientes, afirma:
– Fiquem à vontade, meus senhores. Não é todo dia que homens tão distintos entram no meu comércio. Sintam-se em casa!
– Merci, – diz o primeiro homem.
– Ispassíba! – exclama seu amigo.
– Então, como vão as coisas, Camus? – pergunta Dostoiévski.
– Ah, tudo na mesma. Estou feliz por ter sido laureado com o Nobel de Literatura, mas isso não é grande coisa em vista de você, que não ganhou o ilustre prêmio.
– Na minha época ainda não haviam criado essa premiação. No entanto, contraí várias dívidas. Isso foi o que eu ganhei.
– Mas você é imortal, meu caro Dostoiévski! – replica o franco-argelino.
– Todos nós somos imortais, querido Albert. Porém alguns homens não têm consciência disso e desprezam a própria alma.
Cristo, que está oculto em outra mesa a degustar vinho, concorda com o autor de Crime e Castigo.
– Não creio em sua afirmação, meu amigo. Tudo é fumaça, apenas isso: fumaça! – divaga Camus.
– Ô amigo, quem escreveu isso fui eu! – reclama Turguêniev, que está no balcão bebendo cerveja alemã.
– Ah, esses russos europeizados me são insuportáveis – lamenta Dostoiévski, enquanto observa as vestes ocidentais de seu conterrâneo beletrista.
– Não posso crer em suas palavras, Camus. Deve existir um propósito para esse circo que chamamos de vida. Do contrário, tudo seria absurdo. Acredito no Cristo, Ele é a grande razão de nossas vidas!
– A existência de alguém como Cristo é, no mínimo, absurda. Se ele tivesse existido, seria um estrangeiro – afirma o Nobel de 1957.
Dostoiévski dá uma longa tragada em seu cigarro e diz:
– Sim, talvez fosse absurda, mas Ele de fato foi um estrangeiro na terra, o único forasteiro que poderia nos salvar.
Cristo pensa com seus botões: “Camus ignora que eu o salvei também, que me deixei crucificar pelo bem de toda a humanidade” – reflete o Messias, que não é visto por nenhum dos presentes.
Lá fora chove, para variar. A cidade de São Paulo está ficando alagada, as enchentes começam a afetar o trânsito, e os moradores de certas regiões tentam salvar seus pertences da água que adentra suas casas.
– Cristo é como essa chuva. Por mais que incomode, Ele é necessário. O homem sofre, eu sei, mas Ele limpa os lares após o sofrimento.
Ao ouvir essas palavras de Dostoiévski, Cristo, até então quieto e invisível, aparece para os dois escritores e, dirigindo-se ao mestre russo, protesta:
– Escute bem, seu russo bêbado! Eu não purifico os lares, não alivio o sofrimento, nem sou necessário a este mundo. Você que não passava de um fanático a me colocar em tudo quanto é canto em seus escritos!
– Meu Deus, mais um pobre diabo que sofre do paradoxo da imitação de Cristo! – assim fala Dostoiévski a Camus.
– Absurdo dos absurdos! Um pobre hippie louco. Esse certamente não tem salvação.
E o Salvador se conforma com a descrença dos comensais, pois nem Ele acredita em si mesmo. “Se não fossem esses malditos filósofos, eu ainda existira um pouquinho” – constata Jesus em sua mais completa descrença. “E isso tudo é culpa daquele maldito Nietzsche. Não sou páreo para ele, confesso”. Então o filho de Maria se retira, não sem antes tomar um gole de cachaça – ele já esvaziou a garrafa de vinho – para aguentar tamanho ceticismo…
– Você viu que tipo mais estranho, Fiódor? Ele, um pobre ripongo, acha que é aquele que veio salvar a humanidade. Mal sabe que ninguém pode salvar o homem de si mesmo.
– Certamente que esse homem que nos dirigiu a palavra é um atormentado, mas eu continuo fiel ao verdadeiro Cristo, porque, sem sua existência, eu não seria nada além de um escritor de folhetins.
– Você é muito maior do que Cristo, meu caro Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski! Devo tudo a você, inclusive meu espanto diante do abismo da existência.
– Não posso admitir que eu seja maior do que Ele, nosso Salvador, nem que o louco que se sentara à mesa próxima fosse Ele. Cristo é a suma beleza do mundo, e o hippie que acabou de sair é uma coisa execrável, um sacripanta.
Pois é, parece que Nietzsche já vê as sementes que semeou crescerem, pois até Dostoiévski agora duvida da presença da “suma beleza do mundo” da mesa ao lado.
Neste momento, a porta do bar se abre, um homem simpático, de belo sorriso, com umas folhas de rascunho em uma das mãos, grita para todos os ali presentes:
– Eis a nudez da verdade!!!
E fulmina com seu olhar os estrangeiros presentes no boteco.
– Mas quem é você?! – vociferam Camus, Dostoiévski e Turguêniev em uníssono.
– Meu nome é Fernando Sabino, e vocês estão todos nus, seus mentecaptos! Como eu também estive na minha última crônica!
E a cortina se fecha sem aplausos, porque já não há viva alma naquele teatro abandonado, perdido no tempo, como uma quase-verdade do diálogo esquecido de um cronista.