Numa viagem de um mês a Buenos Aires, o casal de brasileiros Felipe Morais e Bárbara Bentivoglio sentiu na pele os efeitos da inflação disparada na Argentina. Em um restaurante indicado pelo Guia Michelin, no badalado bairro de Palermo, na quinta-feira, 4, a conta chegou 20% mais cara do que calcularam com os preços do cardápio virtual durante a espera na fila para entrar.
Surpresos, o engenheiro de software de 35 anos e a consultora de marketing, de 36, discutiram com os atendentes, que explicaram que os preços válidos eram os do cardápio físico, e que o virtual acabava de ser atualizado. “Atualizaram o virtual quando estávamos comendo. Não achamos justo pagar mais do que o que tínhamos visto na fila, e por sorte eu tinha gravado uma imagem dos valores dos pratos que vimos no celular um pouco antes”, disse Bentivoglio. As informações são do Estadão.
“No final, deram 20% de desconto, o que fez com que a conta ficasse próxima ao que eu tinha calculado uma hora antes.” O casal acabou pagando 80 mil pesos argentinos (cerca de R$ 410 no dia), em vez dos 100 mil (R$ 520) que tinham sido cobrados inicialmente, por dois pratos principais, uma entrada e um drinque.
Consultada pela reportagem, que presenciou a cena, uma garçonete do local explicou que o cardápio físico do restaurante tinha sido atualizado havia uma semana, mas que houve uma demora para atualizar o digital, o que só foi feito por volta das 23h da noite daquela quinta-feira.
O episódio é uma amostra do descontrole dos preços no país vizinho, que parecem ter acelerado após a posse do novo presidente, Javier Milei, em dezembro, e suas medidas econômicas – como a desvalorização do peso em mais de 50%, fim do congelamento de preços e reajuste de combustíveis. Todos os produtos estão passando por aumentos, em muitos casos semanais, e donos de restaurantes tendo de repassar reajustes de pelo menos 10% semanais para os cardápios. Esse descontrole acaba encarecendo as viagens de brasileiros ao país.
A inflação da Argentina fechou dezembro em 25,5%, segundo dados do Instituto de Estatística e Censos do país (Indec), divulgados na quinta-feira, 11. Com isso, 2023 terminou com um índice de 211,4%, a maior taxa anual desde a hiperinflação registrada em 1990. Os números superaram os da Venezuela e fizeram a Argentina ter a maior inflação da América Latina.
“A inflação de dezembro é exacerbada por essas correções de preços que estavam super atrasados e esperamos que em janeiro o índice seja similar, e depois, com a correção dos preços relativos, comece a baixar”, explica Matias De Luca, economista especializado em mercado financeiro.
Santiago Manoukian, chefe de Research da consultoria econômica Ecolatina, explica que os preços na Argentina costumam aumentar com a desvalorização da moeda pelos aumentos dos preços em pesos dos insumos necessários para a produção, “o que gera um efeito cascata na economia, pelos custos que criam para as empresas, que depois transladam, finalmente, para o consumidor”.
Além disso, com aumento do dólar, produtores também aumentam seus preços para manter a paridade do que recebem pelas vendas no mercado externo e interno. Para De Luca, também existe um mecanismo de defesa entre os argentinos de estabelecer preços tendo o valor do dólar como referência, por estarem acostumados a que, historicamente, sua moeda perca valor.
Preços equivalentes
“Viemos atraídos pelas notícias de que Buenos Aires estava muito barata, de que aqui brasileiro era rei, mas não sentimos isso. Os preços em geral já não são mais tão vantajosos quanto aparentavam ser há alguns meses”, disse Bárbara Bentivoglio. “Estamos com a sensação de que os preços estão bem equivalentes aos do Brasil.”
Segundo ela, “a diferença é, se você gosta de comer bem, principalmente carne,aí é mais barato”. Segundo Felipe Morais, em um restaurante no bairro de San Telmo, um tradicional corte argentino “ojo de bife” e acompanhamento abundante de purê, que serve três pessoas, com um “bom vinho” e água, a conta saiu por R$ 68 por pessoa – ou R$ 204, no total. “Quando o assunto é carne e vinho, de qualidade, nós de fato ainda comemos muito melhor e mais aqui gastando consideravelmente menos que no Brasil”, disse.
O arquiteto Carlos Perondi Wieck, que esteve na cidade na virada do ano, também achou a comida barata. “Se fizermos um comparativo com o nível de restaurantes de qualidade no Brasil, a experiência em Buenos Aires é mais barata. Uma conta, pedindo drinques e vinho, dava cerca de R$ 200 por pessoa. Em São Paulo, isso num restaurante badalado daria uns R$ 300. Não é uma diferença grande, mas é uma diferença para menos”, disse.
Ele diz, no entanto, que pagou cerca de R$ 1 mil pela diária do hotel para duas pessoas no bairro de Palermo, valor que considerou “caríssimo” para a qualidade da hospedagem. A festa de ano novo com jantar, com três taças de vinho e uma de champanhe, em uma balada local, também saiu caro: cerca de R$ 500 por pessoa.
O que alguns turistas e trabalhadores do setor ressaltam que mudou mesmo é a vantagem cada vez menor de trocar dinheiro nas casas de câmbio irregulares (chamadas na Argentina de “cuevas”, ou cavernas, em português) ou na empresa de remessas de dinheiro Western Union, e ficar andando com um bolo de dinheiro no bolso.
Antes da chegada de Javier Milei ao poder, com a compra de moeda estrangeira controlada pelo governo, era muito vantajoso trocar reais ou dólares nesses locais, já que a cotação no mercado paralelo era o dobro da oficial. Mas, desde a desvalorização de mais de 50% do peso em dezembro, o dólar paralelo, conhecido como “dólar blue”, se manteve relativamente estável e a brecha em relação ao oficial diminuiu. Na sexta-feira, 12, o dólar oficial estava cotado em 835 pesos, enquanto o paralelo estava em 1.120 pesos, uma diferença muito menor que a que costumava ser.
Já o dólar MEP (ou dólar bolsa), cotação aplicada nas compras com cartão de crédito estrangeiros, não somente aumentou, como tem às vezes ultrapassado o valor blue. “Convém pagar com cartão de crédito, já que o dólar MEP está mais alto que o blue”, diz Carolina Rodríguez De Pian, gerente das Cabanas Villa Labrador, um complexo de hospedagem de luxo em San Carlos de Bariloche, muito frequentado por brasileiros no inverno. Apesar da cobrança de IOF nas compras internacionais, no caso de hotéis argentinos, o pagamento com cartão resulta no desconto de 21% para o hóspede, devido à isenção de um imposto local.
Para o turista brasileiro, porém, no caso do cartão, é preciso levar em conta também a questão da volatilidade cambial: sempre há o risco de a cotação do dólar estar desfavorável no momento do fechamento da fatura.
Segundo De Pian, os valores das diárias do lugar sempre estiveram em dólares, e não variaram desde a desvalorização do peso estabelecida pelo governo e a forte inflação registrada em dezembro. “Não modificamos nada, são os mesmos preços”, garante, detalhando que as diárias no local variam de US$ 120 a US$ 1 mil na baixa temporada e de US$ 200 a US$ 1,8 mil na alta.
Vinho mais caro, mas ainda barato
Em uma vinoteca, a arquiteta Thaís Helena Ribeiro ouviu do vendedor que era melhor que comprasse logo um dos vinhos escolhidos, já que aquele rótulo aumentaria durante a tarde. Ela estava levando oito garrafas de vinho. “Alguns estavam com uma diferença de uns 20% em relação ao Brasil. Outros, 40% mais baratos. Valeu super a pena”, disse.
A vantagem acontece apesar dos aumentos registrados após a posse de Milei em dezembro. Um Angélica Zapata, vinho muito escolhido por brasileiros, passou de 23 mil pesos (o equivalente a R$ 131), no final de novembro, para 32 mil pesos (R$ 140). No Brasil, em importadoras, esse preço pode passar de R$ 400. Já um El Gran Enemigo saltou de 45 mil pesos (R$ 257) para 63 mil (R$ 276). Aqui no Brasil, pode passar dos R$ 700.
“Desde 10 de dezembro, os aumentos dos vinhos são de cerca de 20% a cada 15 dias. Para os argentinos, a situação é difícil. Mas, para os brasileiros que procuram rótulos de alta categoria, continua muito vantajoso, porque não encontram esse tipo de vinho a esses preços em outros países”, disse Diego Ledesma, responsável por uma unidade da rede de vinotecas Frappé no bairro da Recoleta.
Ledesma conta que, em somente uma compra, um brasileiro costuma levar um valor equivalente, em vinhos, ao que dez argentinos adquiririam. E, por enquanto, ele garante que isso não mudou.
Estadão