Os pós-modernistas poderiam dizer que, para entender a globalização hoje, precisaremos desconstruí-la, sem, no entanto, apontar o que será colocado em seu lugar. Desconstruir implicaria olhar para as partes que a compõem para compreender o todo, ou seja, voltamos ao Paradoxo do Navio de Teseu. Podemos entender a globalização apenas analisando a posição da China? A transição entre os governos Trump e Biden? Mudanças climáticas? O contexto histórico? Os efeitos da pandemia e a produção e distribuição de vacinas?
Com o fim da Guerra Fria, a dimensão militar da globalização perdeu força para a dimensão econômica que prevalecia até o início da pandemia da COVID-19. Podemos dizer que a pandemia tornou-se o que Frederic Jameson chama de “Mediador de Desaparecimento”,[1] ou o mediador evanescente, que segundo Etienne Balibar é “[…] a figura (admitidamente apresentada em termos especulativos) de uma instituição transitória, força, formação comunitária ou espiritual que cria as condições para uma nova sociedade e um novo padrão civilizacional – ainda que no horizonte e no vocabulário do passado – reorganizando os elementos herdados da própria instituição a superar. “
Com o início da pandemia e a corrida para encontrar vacinas apontou para a interdependência entre os países na contenção da doença e os esforços no desenvolvimento e produção de vacinas tiveram, inicialmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) como protagonista. O multilateralismo ganhou força e renovou a esperança de uma solução compartilhada para desafios comuns, que logo deu lugar aos interesses nacionais na busca por vacinas.
Os países desenvolvidos começaram uma corrida para adquirir vacinas para sua população, abandonando o ideal do Covax Facility da OMS, que visa distribuir vacinas igualmente para os países. Eles voltaram às suas origens coloniais, ou seja, garantir o abastecimento e o bem-estar interno a despeito do que ocorre com a população e recursos naturais de outros países.
Como resultado, resta aos países em desenvolvimento revisitar as bases da Conferência de Bandung: relembrar as experiências compartilhadas entre os países do Sul Global no encontro com o Norte desenvolvido e buscar soluções compartilhadas e solidárias a partir dessa experiência.
Neste sentido, observamos a emergência da Coronavac (China), Sputnik V (Rússia) e Covaxin (Índia) como opções viáveis para atender a população de países em desenvolvimento, que por razões econômicas ou técnicas não têm tido acesso às demais opções (tome por exemplo, o Canadá, que é colocado como exemplo de preparação para a aquisição de vacinas para sua população, mas que tem contribuído em certa medida para a indisponibilidade de vacinas).
Nesse sentido, há uma concentração de opções de vacinas produzidas por países que fazem parte do BRICS (instituição de cooperação formada por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), que, não fosse pela resistência em aumentar a cooperação neste campo (o Brasil sendo o principal detrator por conta de sua política externa equivocada de alinhamento automático com os Estados Unidos – que deve ser revisada agora com Biden), poderia beneficiar muito os próprios países do BRICS, assim como os demais países do Sul Global.
Assim, a pandemia representa um desafio e uma oportunidade para o processo de globalização. Vamos continuar a olhar apenas para o interesse nacional, desconsiderando a interdependência que existe entre os países A vacina para COVID-19 aponta para a solidariedade nas relações internacionais no nível médio (entre nacional e internacional) dos BRICS, elevando o potencial para processos de cooperação entre potências médias e países do Sul Global, proporcionando assim respostas regionais para os desafios regionais, colocando a globalização em novos termos.
*Douglas de Castro é professor e advogado head das áreas ambiental e regulatória do Cerqueira Leite Advogados.