A primeira que surge vem dos guardados da infância, mais precisamente da região da antiga Companhia Paulista de Estradas de Ferro onde a colônia dos trabalhadores ocupava parte da área da estação. As casas tinham a frente para o pátio de manobras e os fundos para a Av. Brasil. Eram quintais arborizados, prevaleciam as mangueiras. Acho que por causa da sombra sempre farta e para ajudar a esfriar a temperatura das casas.
Depois do terreiro uma pequena ladeira de paralelepípedos ligava o pátio com a Rua Nove de Julho. Era ali, na esquina, no cantinho do muro que morava uma senhora morena. Passava o dia sentada em uma lata, cozinhando em fogo improvisado no chão alimentos que ganhava ou recolhia da feira livre.
Ela tinha turbante na cabeça, vestido costurado de retalhos – outra atividade que lhe tomava boa parte do tempo e alguns ajuntados em seu redor. Eu me lembro bem dos seus olhos, um pouco arregalados e sempre atentos ao que se passava na sua volta.
Tia Rosalina Tanuri, professora, escritora e pesquisadora da Comissão de Registros Históricos, produziu crônica que teve por personagem central esta senhora. Para quem é das antigas, vai lembrar porque pertinho dali ficava o “beco do mijo”, outro belo artigo que brotou da sua escrita criativa.
Viro páginas da memória e surge a dona Flora, mãe do querido polaco Edson Ferracini. O marido Mário Ferracini foi proprietário de uma oficina na Rua Catanduva, onde, além de serviços gerais fazia as mariquinhas em alumínio fundido.
Sempre magrinha e elegante, dona Flora ficou no registro da memória pelas inúmeras vezes que a vi seguindo para a capela de São Vicente. De véu branco na cabeça, já saia de casa em prece e ia arrebanhando as amigas pelo caminho. Eram elas as responsáveis por uma forte corrente de oração e pelo trabalho das vicentinas em prol dos mais necessitados.
Pertinho de casa, na Sampaio Vidal, acontecia a feira livre aos domingos. Na frente do SENAI ficava a banca de peixe mais movimentada e mais reclamada nos jornais. Os peixes vinham do Rio Feio e do Rio Paraná, a sardinha vinha do Porto de Santos, via trem da Paulista. Fim da feira e a combinação de sol quente com restos de peixe e água de limpeza jogada das bacias sobre o asfalto era certeza de reclamação no dia seguinte.
Aqui a personagem é a dona Maria, pessoa querida que ao longo do tempo tomei a liberdade de chamar de comadre, amizade e intimidade que nasceram a partir das constantes visitas e dos diálogos sobre assuntos mais aleatórios possíveis.
Enquanto filosofava sobre as dificuldades e as facilidades da vida, ia limpando os peixes com o estranho xisto de morder a língua no canto da boca. Limpou peixe até outro dia na feira, a banca foi diminuindo de tamanho, mas ganhou a companhia do filho e da nora. Dos peixes migraram para as verduras.
Dona Maria bate hoje a casa dos oitenta, mas está lá, firme e forte na lida enxada na horta, de onde saem as verduras para a banca. E ai de quem disser que não pode fazer mais este serviço!
Já citada anteriormente, Tia Rosalina é outra mulher que tomou conta de alguns capítulos neste compêndio de memórias. Já a conhecia pela sua incrível atuação como historiadora apaixonada pela cidade e depois no estreitamento da amizade após o convite que recebi para passar a compor a Comissão de Registros Históricos.
A Tia é a “professorinha” do coração de todos os marilienses, mas é por naturalidade uma inspiradora para os escritores, pela sua paixão e narrativa sempre fácil a compor linhas e mais linhas sobre nossa gente e nossa história.
E se aqui fosse continuar a escrever sobre elas, mulheres que passaram a fazer parte das páginas da minha história, seja pelo relacionamento ou pela simples observação, este texto não teria fim. Dona Geni, minha mãe, confeiteira de bolos de casamento, costureira, mascate de roupas da 25 de Março e da Rua José Paulino, mulher que trouxe as primeiras calças rancheiras para venda em Marília, professora de corte e costura no Centro Luz e Verdade, deu aulas de tricô e costura junto com Dona Maria Saad (outra bandeira feminina) para mulheres assistidas pela comunidade espírita de Marília.
Entre os vinte e os trinta anos de idade entrou nesta história Valéria Munhoz, pedagoga e contadora de histórias que se tornou Evangelista ao se casar com o autor desta crônica e me presenteou com uma família maravilhosa e o convívio com Joana Plaça, minha sogra, pessoa querida, baiana arretada que tem mãos fantástica para a cozinha e o coração quente como principal tempero da vida onde cabe a família inteira e sobra espaço pra quem chegar.
E para abrilhantar mais ainda este relacionamento com mundo feminino chegou a Luiza, a “miduca do vô”; quebrou a hegemonia dos cromossomos masculinos na hereditariedade do clã Evangelista e tem alegrado nossos dias com sua simpatia, os sorrisos, as piscadinhas e um charme todo especial. 
Se eu aprendi algo com todas elas? Sim. Aprendi que a vida sem o toque feminino ao nosso redor pode ficar muito chata. Aprendi a cozinhar e faço o exercício diário de aprender a amar, sem limites. Feliz Dia Internacional da Mulher a todas vocês!!!     

Ivan Evangelista Jr é membro da Comissão de Registros Históricos de Marília e coordenador de Cursos Superiores de Tecnologia do IST/Univem.
 

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