Lá estava Carlos Camacho em sua poltrona, cigarro aceso, em frente ao jornalista, também sentado, que lhe entrevistava:
– Qual é o segredo dos seus textos? – pergunta o jornalista.
– Não há segredo algum. Eles simplesmente acontecem – responde o escritor.
– O senhor poderia explicar melhor aos nossos leitores como os seus textos “acontecem”?
– Ah, é muito simples. Sento-me em frente à máquina e começo a escrever o que me vem à cabeça – responde o escritor Carlos Camacho.
– Então o senhor produz uma espécie de escrita automática? – quer saber o jornalista.
– Não sei se se trata de uma escrita automática. Para mim, escrever é como matar a sede. Simplesmente bebo da minha água – e o escritor dá uma longa tragada em seu cigarro de filtro vermelho.
– Mas, então, o senhor não possui um método de escrita, uma espécie de manual para como escrever? – insiste o entrevistador.
– Veja bem, eu não possuo nada. Tudo o que tenho são meus escritos. Não sou Descartes para ter método – ironiza Carlos.
– O senhor disse que escrever é como matar a sede. Por acaso o senhor encara o trabalho literário como uma questão fisiológica, como se o próprio organismo é que lhe pedisse para escrever?
– Ninguém me pede nada. Quando digo que bebo da minha água, quero dizer que apenas registro no papel minhas vivências – e o aclamado escritor se levanta, vai até uma estante e pega uma garrafa de vodka. Enche dois copos, um para ele e outro para o entrevistador.
– Mas, meu caro jornalista, tomemos um gole para refrescar o espírito – e Carlos bebe a vodka à moda russa, num gole só, direto na garganta.
O jornalista dá uma leve bebericada. Afinal, está ali a trabalho, não quer ficar de pileque.
– Onde paramos mesmo?- questiona Camacho, enquanto acende outro cigarro.
– Estávamos falando do seu processo criativo – relembra o jornalista.
Nesse ínterim, um cão enorme entra no gabinete, dirige-se até o seu dono e lambe a mão que segura o copo vazio. Era Sansão, companheiro dinamarquês de Carlos Camacho.
– Ah, sim. Não tenho um processo criativo, não. Qualquer acontecimento pode me levar a escrever, como essa lambida que ganhei do meu cachorro.
– Uma lambida de cachorro pode inspirar um escritor? – questiona cético o entrevistador.
– Sim, meu caro Floriano – era o nome do jornalista. Por isso é que digo que minha escrita simplesmente acontece. Não planejo nada, apenas retrato momentos.
– Então o senhor é uma espécie de fotógrafo do cotidiano?
– Exatamente. E digo mais: Sou antes alguém que pinta o mundo por meio da escrita do que propriamente um escritor.
– Mas o senhor escreve muito bem…
– É que sei usar as cores certas nas minhas telas! – interrompe o escritor, um tanto irritado com a obstinação do jornalista sobre o seu processo de criação.
E continua:
– Escrever é dar cores à vida, colorir a realidade baça em que vivemos. Para mim, isso é tudo – sentencia Camacho, já entornando mais um copo de vodka.
– Interessante. Isso que o senhor acabou de dizer não está na contramão da chamada literatura engajada? – quer saber Floriano, cada vez mais curioso com aquele escritor bêbado, rescindindo a tabaco e cheio de lambidas de cachorro.
– Sou engajado na existência. Ela é a minha única bandeira. Essa moda de literatura engajada não produz literatura, porque é panfletária. Chamo esse tipo de literatura de literatura panfletária, e não de engajada. O escritor deve se inserir no mundo como um cientista que vai realizar seus experimentos. Se ele, o escritor, vai realizar sua experiência literária, se ele quer dar seu testemunho já armado de determinado ponto de vista, ou teoria, ele estraga o experimento, que passa a dizer mais de suas convicções do que da vida propriamente dita, porque viver é e sempre será um grande ponto de interrogação.
– Mas imagino que o senhor saiba que Sartre não encara a literatura dessa forma – adverte o jovem jornalista Floriano.
Eram os anos sessenta. Jean–Paul Sartre estava na moda entre os jovens intelectuais.
– Não estou nem aí para Sartre! Essa moda há de passar logo, logo! – esbraveja Carlos Camacho, já irritado por ouvir o nome do filósofo francês.
– Mais uma pergunta…
– Não, chega de perguntas, rapaz! Estou bêbado, cansado e tenho que terminar um artigo para enviar até amanhã para o meu editor!
– Por favor! – o escritor aponta a saída.
Era o fim da entrevista.
No portão, Floriano ainda dá uma olhada para aquela casa suntuosa, com seu belo jardim. Sansão aparece na janela e late amistosamente para o jovem jornalista, admirador de Sartre e aspirante a escritor.

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