Os transtornos mentais têm ganhado espaço na mídia atual. A depressão atinge cerca de 300 milhões de pessoas no mundo, chegando a 5,8% da população brasileira no ano de 2017. A ansiedade atinge 18,6 milhões de brasileiros (9,3% da população), de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Os casos de suicídio se tornam alarmantes e campanhas ressaltam a necessidade de pedir ajuda e falar sobre saúde mental. Nesta realidade, como alguém pode saber se está normal ou se possui algum adoecimento?
Duas perguntas muito importantes devem ser feitas para responder a questão: você está em sofrimento? Você percebe prejuízo no desempenho de suas atividades cotidianas? “Muitas pessoas podem ter particularidades sem estarem adoecidas: um jeito ansioso, tristezas e lutos arrastados, personalidade mais rígidas, e até mesmo ouvir alguma coisa que os outros não escutem”, explica o psiquiatra Edson Detregiachi.
“O ponto chave é detectar quando existe algum prejuízo. Uma ansiedade pode ser contornável, porém, quando se reprova anos seguidos em concursos por causa dela, algo precisa ser feito. Uma parcela dos pacientes que buscam um psiquiatra não chegam a ter transtornos, o fazem por buscar autoconhecimento e outras conquistas”, afirma.
“O primeiro preconceito que precisamos vencer é sobre normalidade. As pessoas são diferentes entre si e poder desenvolver uma personalidade única é um processo saudável e necessário. Em Saúde Mental, não falamos mais de doenças, mas sim de transtornos. Um transtorno é algo que interrompe a vida da pessoa, causa danos, mas que pode ser tratado, com um cuidado profissional adequado”, complementa.
Nesta entrevista para a revista D Saúde, o psiquiatra aborda temas como depressão, ansiedade, sofrimentos que podem surgir relacionados a emoções positivas, o potencial dos sentimentos ditos negativos para o crescimento pessoal e também comenta sobre o impacto das redes sociais em nosso cotidiano. Confira a seguir.
Deve ser muito difícil encontrar uma pessoa que nunca tenha sofrido. Todo sofrimento é sinônimo de algum transtorno mental?
Não, pelo contrário. O sofrimento é uma experiência muito própria da condição humana, vivê-lo é importante para que se consiga aprender e crescer. Pode-se sofrer por todo o tipo de coisas, ruins ou boas: amores, inveja, dor, conquistas, perdas, incerteza. Na maioria das vezes, sofremos por frustrações, e isso pode ser saudável se for tolerável. Diante de frustrações temos a oportunidade de aprender e descobrir formas de modificar a realidade para superá-las. Quando o que conseguimos modificar é a realidade que diz respeito a quem somos, então temos o que chamamos de crescimento. Um dos problemas que surgem do sofrer é a intolerância a frustrações. Se, por um lado, a vida em sociedade permite inúmeros avanços científicos e tecnológicos, a cultura humana vem se tornando cada vez mais imediatista. Tudo trafega numa velocidade muito rápida, desde compras até informações, e inúmeras atividades preenchem cada segundo do cotidiano. É preciso viver momentos de impotência para que se aprenda a superá-la. É preciso haver momentos de reflexão para descobrir quem somos. Se sempre encontramos respostas prontas para todas as questões da vida, sobram poucas oportunidades para realmente aprendermos a superá-las e tolerá-las. Outro problema é o sofrimento que se torna rígido ou insuportável. É aqui que ele age como um bom termômetro para medir a necessidade de pedir ajuda. Há sofreres que, mesmo tendo abertura de aprendizado, não conseguimos transformar em superação, pelo menos não sozinhos. Há também aqueles que são muito intensos e disruptivos para que consigamos sobreviver sozinhos.
Como identificar cada sofrimento?
Um exemplo que podemos tomar é a perda de um ente querido. Num luto normal, há sofrimento, mas as condições permitem uma recuperação espontânea. No luto patológico, o sofrer pode se tornar rígido, paralisando o sujeito no tempo. Pode surgir, ainda, um episódio depressivo, com quebra na capacidade da pessoa de seguir em frente. O sofrimento rígido, que não consegue ser transformado, e o disruptivo, que quebra a vida cotidiana, delineiam a necessidade de ajuda. Algumas dessas situações podem apontar para um transtorno mental ou até mesmo para outra condição médica. Algumas doenças, como Hipotireoidismo e Lúpus, podem aparecer na forma de sintomas mentais.
Como diferenciar tristeza e depressão, sobrecarga e ansiedade, tédio e distúrbio de atenção?
Não existe uma resposta a essa questão que seja, ao mesmo tempo, simples e correta. Quando falamos em um transtorno mental, existem conjuntos de critérios diagnósticos que devem ser considerados por profissionais tecnicamente competentes para reconhecer os sinais e sintomas envolvidos. Ao tratar de depressão, por exemplo, não falamos de um sinônimo de tristeza. A tristeza excessiva pode ser um dos sintomas de um episódio depressivo, junto a anedonia (ausência de prazer), insônia e diversos outros. A sobrecarga de responsabilidades pode ser desencadeadora de um transtorno de ansiedade, de outros transtornos, ou ser ela mesma o sofrimento em si. Uma criança com dificuldade escolar pode não sofrer nem de tédio e nem de desatenção, mas de ansiedade, dislexia, ou outras condições. Um psiquiatra estuda seis anos de Medicina e mais três de residência para atingir essa competência e deve avaliar individualmente cada indivíduo; não existe uma resposta padrão que sirva para todos. Em termos populacionais, é importante reconhecer os sintomas de sofrimento e prejuízo: eles são critérios maiores de todos os transtornos mentais. Um sofrimento rígido ou disruptivo é sinal de alerta, indica a necessidade de avaliação profissional competente, que terá meios de detectar um transtorno ou outra condição médica.
Hoje em dia se ouve muito que é importante buscar ajuda para o sofrimento mental, mais do que para outras condições de saúde. Qual a necessidade de tanta propaganda?
Quando falamos de preconceito e estigma em psiquiatria, é difícil fazer jus ao peso desses termos. Boa parte das ofensas existentes hoje vem de diagnósticos antigos e atuais (idiota, cretino, demente, etc). Há cinco séculos a loucura é expulsa das cidades e encarcerada. Nesse período, humanos foram acorrentados e torturados e muitos hospícios abriam as portas como “zoológico” aos fins de semana. A barbárie dos manicômios se equipara ao Holocausto. Além disso, a Psiquiatria é uma área muito nova, do ponto de vista técnico científico. As primeiras medicações datam da década de 50, até então não existiam tratamentos realmente eficazes. Mesmo com as mudanças atuais, há um peso cultural que deslegitima os sofrimentos mental e emocional. Há muitos que negam os transtornos mentais, emitindo rótulos de fraqueza a seus portadores. Não é à toa que a busca por ajuda seja um dos maiores obstáculos. Há crenças de que é preciso se esforçar mais, de que é imoral ter um diagnóstico, ou mesmo do pavor de alguém ser tachado como “louco”. O vilão desta história é o preconceito e todo combate a ele nunca é demais. É preciso esforço para buscar ajuda, e por isso são necessárias tantas ações públicas de encorajamento.
E na atualidade, é possível ter qualidade de vida quando se sofre de algum transtorno mental?
Sim. Os avanços na Medicina levaram à descoberta de muitas medicações e tratamentos, bem como a uma melhor compreensão dos transtornos. A maioria das pessoas responde bem aos tratamentos disponíveis, tanto que, na maior parte das vezes, buscamos a remissão dos sintomas (desaparecimento). Existem casos que são refratários, ou seja, que não respondem aos tratamentos existentes, mas são raros. O risco de refratariedade é menor, contudo, quando um transtorno é identificado e tratado logo no seu início. Além dos sintomas, alguns transtornos podem ter efeito degenerativo no sistema nervoso central. Isso significa que, se não forem tratados corretamente, deixam danos irreversíveis, como perda cognitiva.
Muitas pessoas dizem temer ficar dependentes de remédios, e, por isso, abandonam tratamento. O que fazer sobre isso?
A maioria das medicações não causa dependência. Ocorre que algumas condições, como diabetes, hipertensão ou esquizofrenia, demandam uso contínuo de medicações para se manter um bom controle. Trata-se de uma necessidade de saúde, e não uma dependência. Apesar de existirem essas condições que precisam ser cuidadas longamente, ditas crônicas, uma parte significativa dos transtornos mentais é episódica. Isso significa que muitos dos pacientes que vão até o psiquiatra farão o tratamento medicamentoso por algumas semanas ou meses, e não por toda a vida.
Quando falamos de dependência, pensamos no uso de drogas que causa prejuízo. Não é apenas o consumo cotidiano que gera o problema, mas também efeitos como de tolerância e abstinência. Algumas substâncias têm potencial de dependência: com certo tempo, exigem doses cada vez maiores para atingirem o mesmo efeito, e ainda podem causar sintomas graves se retiradas repentinamente. É o caso de drogas recreativas, como o álcool, e de alguns medicamentos, como Morfina e Clonazepam. São os famosos “tarja preta”, que precisam de formulário especial na farmácia. Isso não quer dizer que sejam más medicações, mas sim que os médicos devem prescrevê-las com responsabilidade e cuidado técnico, com programação de retirada a médio prazo, e evitando gerar uma síndrome de dependência.
E sobre outros efeitos colaterais, como ganho de peso e disfunção sexual? É seguro tomar medicações?
Todos os remédios podem causar efeitos colaterais, não só os psiquiátricos. Isso não significa que todas as pessoas vão senti-los. Há muita variação entre diferentes pessoas. O médico deve saber identificá-los e, em conjunto com o paciente, dosar os riscos e benefícios de cada tratamento disponível. Alguns efeitos colaterais podem ser graves, como alterações na condução elétrica cardíaca e convulsões, enquanto outros podem ser contornáveis, como uma redução leve no apetite. Quando nos deparamos com um efeito colateral limitante, geralmente buscamos outra medicação à qual o paciente melhor se adapte. Existem medicamentos que podem levar a aumento de apetite e no tempo de ejaculação, por exemplo, mas outro fator que deve ser considerado são os sintomas de um transtorno. Uma depressão pode ter esses sintomas, o que pode gerar certa confusão. É importante abertura e diálogo na consulta para lidar com possíveis efeitos colaterais.
Além de medicações, existem outras formas de tratamento na psiquiatria?
Sim. Os tratamentos não costumam ser excludentes, mas se complementam no que chamamos de plano terapêutico. Assim como em toda condição crônica de saúde, são indicadas mudanças de hábitos de vida: alimentação diversificada, atividade física regular, sono adequado são alguns exemplos. Cada transtorno pode indicar diferentes pesos a cada esfera de hábitos a ser destacada, todavia é rara uma condição de saúde que não se beneficie de algum tipo de hábitos saudáveis.
Outra dimensão é a psicodinâmica. Estudos apontam eficácia disparadamente maior no tratamento quando o uso correto de medicação é associado a alguma forma de psicoterapia. No começo da entrevista abordamos a importância de aprendizado e crescimento. São esses os fenômenos buscados na abordagem psicoterápica, nas formas de conhecimento e transformações. A psicoterapia é interessante não apenas para portadores de transtornos, mas para todos os que busquem ganhos na relação com a vida e a realidade cotidiana.
No início foi dito que se sofre por coisas positivas na vida humana. É possível sofrer por amor ou por conquistas?
Sim, não só possível como frequente. Uma das maiores apreensões do humano diz respeito ao desconhecido. Nossa espécie não possui muitas defesas biológicas, como garras, presas ou carapaças. O que nos resta é nossa capacidade mental de vasculhar a realidade em busca de estímulos que já conhecemos. Logo, qualquer experiência muito intensa ou nova é também aversiva. Não é à toa que paixão significa enamoramento e sofrimento. Existe uma tendência que chamamos de compulsão à repetição. Repetimos vários comportamentos ao longo da vida; muitos deles são bem sucedidos, o que é uma boa estratégia, todavia acabamos repetindo também algumas formas de sofrimento. Há situações em que não toleramos uma conquista por medo do novo, ou que nos intimidamos frente a relações desejadas. Quando suportamos as experiências, há oportunidade de aprender com aquilo que era desconhecido até então. Existem algumas experiências transformadoras que ocorrem espontaneamente, contudo, um trabalho terapêutico ou analítico pode permeabilizá-las de forma mais ativa.
E quanto aos sentimentos negativos, como inveja e tristeza, eles também podem gerar ganhos?
Absolutamente sim. A inveja é uma vivência em que atacamos um outro, em fantasia, quando nos deparamos com nossas próprias limitações. Sem a inveja, tende-se a negar tais limitações, o que leva à estagnação. Desde que esse ataque não rompa a fronteira da fantasia, há potenciais de crescimento. Na medida em que toleramos sentir a inveja, torna-se possível refletir e compreender partes rejeitadas de nossa personalidade. Junto à reflexão, manifesta-se o sentimento de tristeza. Diante dela, tende-se a pensar mais e agir menos, é um sentimento que convida a retirar-se do resto do mundo, momentaneamente, e olhar para dentro de si. Ainda que esses sentimentos sejam chamados “negativos”, por carregarem uma medida de desprazer, eles representam experiências fundamentais para a vida humana. Assim como a ansiedade, que, numa medida certa, nos prepara para um melhor desempenho em situações aversivas, eles também cumprem sua função. Sua ausência total é tão patológica quanto seu excesso: ninguém é saudável sentindo apenas alegria.
Em tempos de redes sociais, que exibem incontáveis momentos de êxtase e semblantes de alegria, parece que se “desautorizam” as vivências negativas. Qual o impacto disso na vida psíquica do ser humano?
As emoções mais simples que vivemos são prazer e desprazer, tendendo a buscar a primeira e evitar a segunda. Quando nos deparamos com as exigências da realidade, todavia, aprendemos a reordenar prioridades e tolerar vivências de desprazer. A partir dessas experiências, aprendemos a reconhecer sentimentos complexos, como saudades e empatia: eles contêm combinações de prazer e desprazer em mediações temporais que enriquecem o mundo emocional. Saudade, por exemplo, é um sentimento de falta e ausência, que se mescla à revivência das qualidades absorvidas no relacionamento com a pessoa de quem se sente a falta. O fenômeno que se observa nas redes sociais assemelha-se a algo como uma desertificação no campo emocional coletivo. Predominam os compartilhamentos de experiências de prazer, quando relativos à vida do sujeito, e de desprazer, quando fazem referência ao outro (segregação política e preconceito, por exemplo). Exibem-se os troféus enquanto evacuam-se as mazelas. O impacto com o qual nos deparamos é aquele do qual falamos no início da entrevista. Diante do empobrecimento emocional, esvaem-se os recursos para tolerar frustrações e usar do sofrimento para aprender a modificar a realidade. Cabe dizer, porém, que esse impacto não se imputa às redes sociais em si, mas sim ao contexto cultural que vivemos. Como os demais avanços tecnológicos, elas podem ser utilizadas para uma ampla gama de atividades, sendo possível extrair também aprendizados e outros ganhos.
Existe relação entre tal empobrecimento emocional e a elevada taxa de tentativas de suicídio na atualidade?
Chamamos de suicídio o ato de tirar a própria vida, contudo, há muitas situações diferentes que são englobadas nesta categoria. É frequente que uma pessoa considerando o suicídio esteja em sofrimento mental intenso, porém os fatores envolvidos são os mais diversos. Estressores cotidianos, relações interpessoais, transtornos mentais, outras condições médicas e dinâmica de personalidade são alguns deles. A baixa tolerância a frustrações pode ser o fator predominante em alguns casos, como uma tentativa de uma jovem seguida a não ter ganhado o celular que queria. Ainda assim, é arriscado generalizar: em sua realidade emocional, a jovem pode ter tentado suicídio por se sentir rejeitada pelos pais. Algumas pessoas podem se sentir um peso excessivo às pessoas amadas e tentar o suicídio como forma de poupá-las. Ou então podem temer que seus impulsos destrutivos as atinjam, e suicidam-se tentando preservá-las. Há quem tente suicídio por sentir ódio e se ver impotente de expressá-lo por outras formas. Há ainda pessoas sofrendo de uma psicose, que não tenham intenção de morrer, porém vivem uma crença delirante de que precisam fazê-lo para salvar o mundo. Há muitas coisas muito diferentes aglutinadas no pacote que chamamos de suicídio. O que costuma ser comum é um sofrimento intenso, disruptivo e rígido, que demanda ajuda. Nesse sentido, é de fundamental importância falar sobre isso, combater o preconceito e viabilizar a busca por ajuda.
Edson Detregiachi (CRM SP 170 242 | RQE 72 754) é médico psiquiatra e psicoterapeuta. Seu consultório fica na Avenida Presidente Roosevelt, 211. Telefones (14) 3306-0061, (14) 3433-1150. E-mail: detregiachi@gmail.com.