Uma fumaça com cheiro de enxofre começava a sair do subsolo daquela velha pensão situada na Vila Mariana. Lá dentro estava um homem a registar seu diário. Os transeuntes que passavam por perto do imóvel, assustados, decidiram chamar os bombeiros.
– A casa está pegando fogo!
– E do lado fica uma distribuidora de gás! – gritou um dos expectadores.
Quando o caminhão dos bombeiros chegou, um dos agentes entrou no quartinho e, para sua surpresa, viu um homem que, embora estivesse em chamas, continuava sentado a escrever. Ele simplesmente ignorava o incêndio.
– Estou pensando, senhor bombeiro. É por isso que tudo neste recinto está ardendo – disse o misterioso homem em autocombustão.
– Você precisa sair daqui agora! – gritou o bombeiro.
– Escute bem. Você sabe quem eu sou? Sou o homem do subsolo e me encontro neste estado desde 1864. Ninguém pode me livrar da minha maldição!
– Mas você está queimando! – tentou advertir o bombeiro em vão.
– Ah, isso é normal. Já espalhei minhas chamas pelo mundo. Cioran, Camus e Beckett são alguns dos “queimados” – e o homem soltou uma gargalhada infernal.
Vendo que não havia jeito de tirar o extravagante morador do subsolo da velha casa, os bombeiros decidiram soltar um jato d’água por fora mesmo, em direção à janela do quartinho, mas as chamas só aumentavam à medida que a água se espalhava.
– Isso não é coisa deste mundo! – gritou um observador.
– É o diabo! – exclamou uma velhinha com um lenço amarrado na cabeça.
A velha que acabava de citar o tinhoso sabia há muito tempo desses assuntos ocultos. Então ela se dirigiu ao orelhão mais próximo e ligou para seu neto:
– Bulgákhov, preciso de você aqui na rua daquele velho casarão urgente!
– Ok – respondeu o neto.
E a velha evaporou-se no meio da multidão que se aglomerava em frente à tragédia.
Quinze minutos depois, Mikhail Bulgákhov chegou ao local do incêndio. Ao presenciar a tragédia, ele tirou do bolso esquerdo do paletó um vidrinho com água benta. Fez uma breve oração e despejou o conteúdo numa das línguas de fogo. Num átimo, tudo se apagou. O homem que registrava seu diário também desapareceu. Uns estudantes do curso de Letras da USP reconheceram Bulgákhov.
– Olha só, pessoal! É o autor de O Mestre e Margarida!
Então o escritor russo bateu o pé no chão e também sumiu, restando somente uma fumaça branca onde ele estava.
E, para surpresa dos bombeiros, não havia um único sinal de fogo e de água no quartinho, que estava empilhado de livros e manuscritos.
Foi então que a dona da pensão disse ao bombeiro que tentara salvar o homem que escrevia que há anos ninguém habitava aquele cômodo.
– E como a senhora explica que agora a pouco havia livros e papéis aqui?
– Não há nada aqui, seu bombeiro.
O subsolo estava completamente vazio quando ela abriu a porta.