Ao som da Rádio Conecta 101,9 FM, desperto ouvindo músicas que a tempo não ouvia, como “Feelings”, interpretada por Morris Albert, que me trazem lembranças de alguém que não vejo a muito tempo. Depois de uma espreguiçada alongada e uma respirada profunda, a firme decisão, mesmo à contra gosto, de sair debaixo das cobertas quentinhas, apesar do friozinho matinal e seu apelo sedutor, sugerindo que eu fique um pouco mais na cama.
Ainda no quarto, arrumando a cama e trocando o pijama por uma bermuda e uma camisa polo, antes de abrir a janela, posso identificar vários sons. Como o alvoroço dos pássaros, que conseguem sobreviver à poluição da cidade, concentrados na copa das árvores da rua, saudando o alvorecer. Um belo exemplo a ser seguido pelos seres humanos, no tocante ao dom da vida, que nos é disponibilizado toda manhã e raramente agradecemos em nossas orações.
Por morar em apartamento, no quarto andar de um residencial, a caminho da toalete, caminhando pelo corredor, posso ouvir e identificar só pelo barulho diferenciado dos veículos automotores, se estão subindo ou descendo a avenida em frente ao condomínio. Principalmente pelas aceleradas ou freadas bruscas, muitas vezes por estarem atrasados, ou se estão acima da velocidade máxima permitida.
Devidamente acordado, mas ainda sonolento, vou até a cozinha para despertar um por um os eletrodomésticos, e colocá-los em atividade. Enquanto a cafeteira tira um cafezinho, o micro-ondas esquenta o leite e o forno elétrico aquece o pãozinho com manteiga, aproveito para checar no celular, devido a tantos ringtones disparados, se têm alguma mensagem importante no WhatsApp. Nada relevante, hora de tomar uma ducha para acordar de vez.
Sentado no sofá da sala, depois do café da manhã, em busca de uma ideia sobre o tema que vou escrever o artigo semanal para a revista D’Marília, ouço o zelador conversando com um morador sobre a chuva que caiu durante à noite. São vozes, sons e barulhos, dos mais diversos tipos, advindos de um universo em que estamos inseridos dia a dia. Que muitas vezes, por negligência, não damos a devida atenção e o valor que eles representam em nosso cotidiano.
Se considerarmos que o cérebro é uma das porções do encéfalo, portanto parte do sistema nervoso central, onde está relacionada a memória, a inteligência e as emoções que sentimos, por qual motivo, somos seres tão insensíveis, distraídos e alheios a tudo que acontece do nosso lado? Talvez por pura distração ou desinteresse, basicamente por sermos escravos do relógio, que nos faz correr contra o tempo.
Quanto aquela história que ouvimos na música “Ouro de Tolo”, interpretada por Raul Seixas, de que usamos apenas 10% do nosso cérebro, não é verdade. Na realidade, usamos de forma eficaz, quase 100% de sua capacidade. O detalhe, fica por conta dos estímulos sensoriais, que por serem constantes, tende a focar no que é mais relevante em seu objetivo. Como os cinco sentidos que o corpo humano nos presenteia.
A visão, através dos olhos, visualizamos as imagens. O olfato, através do nariz, sentimos os aromas. O paladar, através da língua, sentimos o sabor. A audição, através dos ouvidos, ouvimos os sons. O tato, através do toque, sentimos o palpável. Adicionando e destacando o sexto sentido, percepção denominada de extra sensorial, pautada na espiritualidade, desenvolvidos especialmente pelas mulheres.
Diante de uma gama enorme de oportunidades, em apreciar o que vemos, respiramos, sentimos, ouvimos e tocamos, não deveríamos ficar indiferentes. Muito embora, muitos ainda fiquem. Como ao toque suave do vento, soprando nossos cabelos; ao exalarmos o ar úmido, advindo de uma noite chuvosa; ao ouvirmos o som de uma linda melodia, nos remetendo ao passado; ao visualizarmos a imagem vislumbrante, de um arco-íris ao amanhecer e ao aroma de um cafezinho.
Definido a pauta a ser desenvolvida, mais um cafezinho, pois é impossível ignorar seu aroma vindo da cafeteira. No notebook, os primeiros toques no teclado agrupando as palavras, dando sentido as frases e completando a sequência dos parágrafos de mais um artigo. Como já foi possível perceber, diante de tantas dicas, estou escrevendo sobre tudo que nos rodeia e nos faz companhia, do amanhecer ao anoitecer de mais um dia de vida.
Não podemos e não devemos viver mecanicamente como robôs, fingindo que somos imunes a tudo que nos conecta à natureza. Guardar lembranças de cheiros, gostos, sons, imagens e de tocar em algo, trazem referências preciosas para a nossa memória. Uma criança chorando por ter caído; um alarme disparado de um carro; um aroma de perfume exalado; um sabor indescritível de uma comida; um friozinho de uma manhã gelada; um calor abrasador de um dia ensolarado; uma chuva de verão no final de tarde. Tudo deveria fazer sentido.
A simples e corriqueira visita ao supermercado, padaria, banca de jornal, pet shop, agência bancária, que ficam no bairro onde residimos, todos os dias, nos faz sentir livres. Quanto coisa, poderíamos visualizar, escutar, tocar, sentir e aspirar, fazendo uma simples caminhada pelo bairro. São dádivas da natureza, que nos faz sentir que estamos vivos e inseridos no mundo das emoções, mesmo que muitas vezes de certa forma involuntária, ignoremos tudo isso.
Diante de um cenário imensurável à nossa volta, que nos dá a certeza de que estamos vivos e ativos, o simples ato de expirar e inspirar o ar ao abrirmos à janela, nos faz sentir parte deste conglomerado de acontecimentos. Seja para ver um casal de idosos passeando, um carteiro entregando correspondência, um casal de namorados fazendo caminhada, um garoto passeando com seu cachorro, ou regando as flores na sacada do apartamento.
Basta ter disposição, boa vontade e querer!
Carlos R. Ticiano é advogado, romancista e colunista.