Por Rosângela Maluf

Nos últimos trinta anos, Esther nunca tivera uma cama só pra si.

Três relacionamentos – coincidentemente com duração de dez anos cada um – fizeram com que sua cama fosse, irremediavelmente, compartilhada por longos tempos. Quero dizer, a cama de casal. A cama, com aquele colchão enorme do qual só lhe cabia uma pontinha, onde se espremia, dormia e, às vezes, sonhava.

Mas a vida dá voltas, muitas voltas, e Esther se viu separada uma vez mais. Por ser uma mulher madura e vivida, já conhecia a imensa dor e a tristeza que o fim de um amor provoca. Por pior que tenha sido o final, sempre fica a lembrança dos bons momentos. Dos instantes de imensa alegria, intenso tesão. Grande companheirismo, cumplicidade e por aí vai. Muitas lembranças boas sobrevivem, persistem e insistem. Mas cuidado com elas, Esther dizia pra si mesma. As boas lembranças podem nos levar às lágrimas e causar muito mais sofrimento, muito mais dor.

Com ajuda de uma amiga terapeuta, Esther racionalizava que, ao final de um relacionamento, pelo bem da nossa saúde mental (que se transforma em frangalhos!), melhor mesmo é não pensar nos bons momentos da relação e nem nos pontos positivos do ex.

Ele tinha defeitos? Claro que sim. – Então, dizia a amiga, fique sempre atenta ao que mais lhe incomodava. Ao que lhe chateava. Ao que lhe dava muita raiva, assim fica menos doído! As lembranças ruins nos vão servindo de bengala para que possamos chegar à outra margem, do outro lado do rio.

Olhando para o seu enorme leito, Esther se alegrava diante da possibilidade real de viver intensamente sua liberdade recém-conquistada. Ela sempre gostara de ler, à noite, deitada em sua cama, antes que o sono chegasse. Agora, sem ninguém pra reclamar do abajur aceso, ela tanto poderia apagar a luz às onze horas ou às três da manhã, dependendo do quão envolvente o livro estivesse. Ou então, se fosse muito interessante, até tarde vendo séries na TV.

Esther acordava bem tarde. Nenhuma obrigação com nada. Nem com o almoço que, dependendo da fome, poderia ser às três ou quatro da tarde ou nem acontecer. Dependia. Queria comer quiabo? Fazia só pra ela. Pequi ou dobradinha que quase ninguém gosta, e ela adora? Fazia só pra si. Queria tomar vinho? Branco ou rosé… escolhia e tomava. Hoje é só refri? Tomava igual. Carne? Ela não gostava. Deu vontade de comer moidinha com pimentão verde? Sim, e daí? O sabor da liberdade é mesmo indescritível.

Entretanto, quando o tempo esfria um pouco ou quando chove dá uma certa vontade de ter alguém por perto, Esther admite. Bem perto, assim do lado. Um colo onde aconchegar-se, sentir o calor da outra pessoa, mas felizmente a vontade passa tão rápido quanto chega! E a contabilidade não para: a delícia de estar bem consigo mesma, sem stress, sem insônia, sem implicâncias, sem reclamações, sem cobranças, sem palpites fora de hora – não tem preço.

Toda a liberdade vivida faz com que tudo se torne cada vez mais prático e mais simples. Seu café da manhã resumia-se a uma fatia de mamão, suco de caixinha, café e torradas (duas) com queijo derretido. E pronto. Breakfast, ok! Esther sempre gostara daquele antigo sistema de coador, canequinha esmaltada, pó que vem lá do interior, o cheiro maravilhoso, capaz de despertar um irresistível bom humor em qualquer pessoa. Sem precisar colocar a mesa, distribuir talheres, jarras com suco, guardanap

Tenho o dia livre… Quero sair? Saio. Preciso ir à feira ou supermercado? Vou. Preciso, mas não quero? Não vou. Há um filme interessante ou uma série irresistível? Quero ver. Prefiro ler? Leio. Absolutamente dona dos meus horários & tarefas. Segunda-feira é dia de lavar roupa. Hoje é quarta feira e nenhuma peça ainda foi lavada. Ah, é? E daí?

Esther se encontrara recentemente com quatro amigas, para um café. Ela e mais duas, separadas e a outra ainda casada, invejando, do fundo do coração, a vida tranquila que as três viviam. Gostosamente, mas sem ninguém…

Todas elas ouviram atentamente as reclamações que iam surgindo ao longo da conversa tarde adentro, temperadas por muitos “cappuccinos”. Maridos? O exagerado consumo de cerveja. O ronco avassalador. O sono inquieto com pernas se mexendo sem parar. O pífio desempenho. E o pior de tudo: Aninha relata seu suplício maior. Um pedacinho do colchão era o que lhe sobrava: ele, alto e gordo, espaçoso e folgado, lhe deixava apenas um pedacinho, assim do lado, onde ela dormia. Uma faixazinha de nada, meio metro, talvez?

Ah, essa foi a desculpa que Esther esperava para botar a boca no trombone:

– Meninas, preciso contar uma coisa pra vocês. Prometi que ficaria só ouvindo, caladinha, mas não resisti! Uma coisa posso garantir! De todas as maravilhas do descasamento a principal é ter a cama de casal só pra gente. Gosto de ter os quatro travesseiros só pra mim. Colocados ao meio do colchão, sobrando aquele espaço enorme. De um lado e do outro, só pra mim. Um travesseiro ou dois para repousar a cabeça. Separo um deles pra quando for me deitar de lado; outro para colocá-lo confortavelmente nos joelhos. 

– Abro as pernas. Uma em cada ponta inferior da cama. Abro os braços. Um em cada ponta superior da cama. Respiro fundo. Inspiro e expiro. Aumento um pouquinho os Beatles no Spotify. Agradeço pela vida boa que tenho. Pela liberdade sem fim e sem preço. Coloco num saquinho as reclamações do dia a dia, amarro uma fitinha e jogo no lixo do banheiro.

– E vou contar mais uma coisa, meninas! Devo confessar que levei um certo tempo para ocupar o espaço total a que eu tinha direito. O lado da cama que me cabia. Mesmo descasada, ainda mantinha o hábito de dormir naquela faixazinha estreita e irritante que me fora destinada durante tantos anos. O pedacinho que me cabia. Mas foi questão de tempo até descobrir a minha posição estrela do mar. É assim mesmo que me sinto hoje em dia… Esparramada…

– Do teto do meu quarto vejo a minha cama como se fosse o mar. Claro, límpido, verde. Uma enorme faixa de areia branca, morninha. Sinto o calor da cena. Estou dentro dela. No mar. No azul do céu. Deitada na areia, estendo os braços e as pernas. Me vejo com cinco pontas: a cabeça, os braços e as pernas. Exatamente como a estrela. A estrela do mar. 

– Sou grata ao universo. Sou grata aos deuses, a todas as pessoas que me amam. Sou agradecida por esta vida boa, tranquila, onde a cama larga é apenas um detalhe de nada. Tenho saúde. Tenho amigos, família, filhos maravilhosos. Tive grandes amores. Uma paixão avassaladora. Plantei árvores e já escrevi um livro, o que mais posso querer da vida? E como estrela sigo imersa em luz, brilhando na noite escura e me vendo nas noites mágicas dos meus sonhos. É ou não é absolutamente genial, meninas?

As amigas entreolharam-se. Soltaram um “huhuuu” e aplaudiram a amiga Esther. Todas pediram mais um cappuccino e entre risadas continuaram a conversa.

A tarde de quinta-feira estava ganha… 

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CRÔNICA: A ESTRELA DO MAR
Foto: Divulgação