Mesmo tendo suas vozes silenciadas e serem constantemente colocadas à margem pela sociedade, as mulheres exercem papéis importantes em todas as épocas. Essa estrutura machista e os desafios causados pelas desigualdades de gênero impulsionaram Raquel Marinho a se aprofundar nas representações sociais da figura feminina.
Estilista, antropóloga e doutoranda em Ciências Sociais, a autora do livro Com que realidades essas camisolas acordam? utiliza o lançamento para discutir o peso que a mulher contemporânea carrega no dia a dia. “Socialmente, estamos e somos sobrecarregadas, assumimos lares e dividimos responsabilidades financeiras (quando não o fazemos na totalidade). Sobrecarga não é poder, é cárcere e, portanto, uma ilusão”, comenta.
Na entrevista abaixo, ela aborda os obstáculos provocados pela misoginia e o excesso de demandas no cotidiano feminino.
Leia:
1 – “Com que realidades essas camisolas acordam?” conta a história de uma estilista que precisa equilibrar as demandas do lar com o mercado de trabalho. Apesar de ser ficção, a protagonista atua no mercado da moda – o mesmo que o seu. De que forma aspectos da realidade e suas próprias vivências estão presentes na obra?
Raquel Marinho: Existe uma ilusão que o mercado de moda é glamour, especialmente, as atividades dos designers que envolvem criações, desfiles, palestras, viagens, entrevistas, entre outras demandas; talvez em decorrência de uma relativa visibilidade. Mas não existe glamour! O que há é muito trabalho e o desafio diário de conciliar a maternidade com qualidade. Isso é parte das minhas vivências que abordo na obra.
2 – O romance lança um olhar para os problemas que as mulheres enfrentam na contemporaneidade. Na sua perspectiva, quais são os principais desafios que elas vivem no dia a dia?
R.M.: 1. Conciliar múltiplas jornadas, como maternidade, carreira e a própria individualidade; 2. Ambientes de trabalho hostis que estimulam os assédios; 3. Objetificação, misoginia e machismo; 4. O descrédito, fazendo com que muitas mulheres, mesmo obtendo os melhores resultados, sofram com a síndrome da impostora.
3 – Você aborda a ilusão do empoderamento feminino a partir da história de uma mulher que se percebe como empoderada, mas que também está sobrecarregada. O que seria essa ilusão do empoderamento?
R.M.: Independência financeira e autonomia para ir e vir não são empoderamento, são uma conquista resultante das transformações sociais, principalmente com a participação da mulher na sociedade. Empoderar pressupõe que não temos nenhuma espécie de poder, e nós o temos, é a sociedade que diz o contrário. Se uma mulher precisa estar casada para ser respeitada, é a sociedade que tira esse poder; se um homem calunia uma mulher e sua voz não têm força suficiente para defender-se, é a sociedade que tira esse poder.
No entanto, precisamos, a todo momento, não permitir que nosso poder se esvaia por entre nossos dedos, pois o machismo e a misoginia tentam a todo custo nos roubar esse poder. Todo empoderamento é emocional. Socialmente, estamos e somos sobrecarregadas, assumimos lares e dividimos responsabilidades financeiras (quando não o fazemos na totalidade). Quando se trata das atividades do lar e maternidade, o mesmo não acontece. Sobrecarga não é poder, é cárcere e, portanto, uma ilusão.
4 – Você é doutoranda em Ciências Sociais, mestre em Antropologia e consultora especializada em moda íntima, sempre com foco na mulher. Por que as mulheres se tornaram seu principal campo de estudo e atuação?
R.M.: De Eva com a folha da figueira, Joana d’Arc queimada na fogueira, a pop star Madonna, Marielle Franco (silenciada), Jaqueline Goes de Jesus que mapeou o genoma do covid-19, entre outras, a mulher sempre teve um papel fundamental na história social da humanidade. No entanto, ela sempre foi minimizada e colocada à margem.
A dinâmica que compõe o ser social feminino é complexa, repleta de desafios, especialmente, em consequência do machismo e da misoginia. Para uma mulher se destacar, ela precisa se esforçar muito mais, não por falta de competência e, sim, por excesso de barreiras. Me sinto impelida a voltar o meu olhar para as mulheres todos os dias, pois vejo e convivo com mulheres inspiradoras.
5 – Seu primeiro livro “Com que sonhos essas camisolas dormem?” é uma série de contos sobre as mulheres de diferentes épocas e gerações. Ao longo dos anos, o que mudou na relação entre a mulher e a sociedade? E o que não mudou?
R.M.: Independência financeira, autonomia para ir e vir, direitos civis, direitos sociais e voz são algumas realidades atuais. No geral, avançamos pouco. Falta igualdade salarial. Sobra assédio e violência. As estatísticas não mentem. Se os direitos fossem realmente iguais e, também tivéssemos vez, não somente voz, nossa participação na política seria maior. E quando estamos lá… por que somos ameaçadas? Violentadas? Silenciadas? A política é somente um exemplo, entre tantos outros.
6 – Após “Com que realidades essas camisolas acordam?”, quais são seus próximos projetos?
R.M.: Atualmente estou com dois projetos paralelos. O lançamento do livro técnico “Moda íntima da prática à teoria: um guia com estruturas e fundamentos para o desenvolvimento de lingeries”, um projeto que iniciei junto com o doutorado e que trago as vivências do cotidiano prático, objetivando contribuir com o mercado de lingeries. Estou também revisando outro romance, que aborda as violências contra a mulher e critica o amor romântico.
Sobre a autora: Doutoranda em Ciências Sociais, mestre em Antropologia da Ibero-América e graduada em Estilismo e Moda, Raquel Marinho é consultora especializada em moda íntima. Além disso, é professora e palestrante, tendo como foco as pesquisas sobre lingeries e representações sociais da mulher na contemporaneidade. Sempre com um olhar para o universo feminino, estreou no mercado literário com o livro “Com que sonhos essas camisolas dormem?”, uma série de contos sobre mulheres de diferentes gerações. Sua obra literária mais recente é “Com que realidades essas camisolas acordam?”, como também publicou o trabalho teórico “Moda íntima da prática à teoria”.