*Por Rosangela Maluf
Nunca havia olhado antes para as minhas mãos como as vejo agora. Não são feias, mas também não são como eu me lembrava delas, ainda jovens.
Com ela, estou acariciando meu gato. Lindamente, ele dorme ao meu lado, no sofá, enquanto não ouço e nem vejo a TV que encontra-se ligada. Não quero perturbar o sono do bichano que chega a ressonar, de tão bom deve estar sendo este cochilo.
Mesmo assim a luz continua acesa. Por isto vejo com detalhes a minha mão que vai de um lado ao outro afagando o seu pelo macio. Desliza pra lá e para cá, mergulhada naquela pelagem cinza, preta e bege. Fofa. Mais alta, chega a cobrir parte dos meus dedos. Quase um veludo, eu penso. Continuo com o carinho. Devagar. Ele suspira. É quase um bebê.
Vejo minhas veias azuladas, em alto relevo e outras menores, descendo em direção aos punhos. Não me lembro quando foi que começaram a se destacar assim sob a pele. Não me lembro. Abro os dedos para vê-las melhor. É… bonitas, não são mais. Nem as veias, nem ela, a mão. Pintinhas senis, só uma…por enquanto. Confiro pra ver se é isso mesmo. Sim, é.
Já foram bonitas. Grandes. Dedos longos. Unhas feitas no salão, toda semana. Sempre o mesmo esmalte. Clarinho. Renda era o nome dele. Algum tempo depois, francesinha e anos mais tarde – ficando para todo o sempre – o vermelho cereja, incansável, resistindo bravamente até hoje, imune aos modismos, aos amarelos, azuis, cinzas.
Ah, estas mãos…
Já cortaram e levantaram bolas de vôlei, nos jogos do clube esportivo. Jogaram com charme, bolas de boliche na tentativa de strikes cheios de charme, no clube social. Ensaiaram as primeiras notas no piano, nas aulas com dona Eulália.Tentaram tocar órgão no coro da igreja com dona Guilhermina, acordeon com o Seu Jurandir nas apresentação do cinema; violão em quase todos os finais de semana, em rodas de amigos. Datilografaram quando computadores sequer pensavam em existir. Rodaram provas em mimeógrafos. (Hoje a meninada nem sabe o que é isso).
Como o tempo passa voando!
E a gente nem se dá conta do quanto e como vamos envelhecendo. Falar certas coisas, contar certos casos e relatar certos fatos à turma jovem de hoje, é garantia certa e inequívoca de pertencer ao jurássico, muito pior, infinitamente pior que ser cringe…
Olho pro Shimmer ainda dormindo. Ele se estica como se fosse acordar, mas suspira de novo. Abre aqueles olhos verdes deslumbrantes. Lambe a minha mão, o que é quase uma declaração de amor. Me inclino e beijo sua cabeça cheirando a patchouli. Muito fofo. Ele volta à posição inicial e continua a dormir. Penso no nome: Shimmer que quer dizer gato, em tibetano. Acho lindo.
E as mãos? Olho-as de novo. Volto no tempo. Não sinto saudades apenas porque foram bonitas, mas no quanto significaram, o quanto agiram, tudo que fizeram, o conjunto de suas ações. O quanto significaram para mim, o quanto trabalharam, ajudando-me a sobreviver.
Essas mãos ancoraram amores.
Embalaram amorosamente dois filhos. Afagaram pais idosos. Acarinharam pessoas queridas. Escreveram cartas, rasgaram outras. Carregaram bolsas, mochilas; malas ao redor dos muitos países visitados. Cumprimentaram pessoas das mais diversas nacionalidades. Antes dos celulares, usaram câmeras fotográficas para registrar tudo de maravilhoso que deveria ser lembrado. Plantaram várias árvores, muitas flores. Escreveram diários adolescentes, cartas cheias de saudades, poemas apaixonados, três livros editados, já em idade madura.
Com cuidado tiro o Shimmer do sofá.
Desligo a TV e apago a luz da sala. Vou, no escuro mesmo, até o meu quarto. Acendo o abat-jour. Coloco o Shimmer no chão. Tiro a roupa e me deito.
Olho mais uma vez para as minhas mãos.
Fazer o quê? Penso em minha mãe e sua imensa sabedoria. Seus conselhos preciosos sobre como aceitar a passagem do tempo e envelhecer com dignidade e, se possível, com alegria, muita alegria…
Sorrio.
Apago a luz e mais uma vez, posto minhas mãos em posição de agradecimento!
N a m a s t ê !
*ROSÂNGELA MALUF É POETA E ESCRITORA. FORMOU-SE EM BIOQUÍMICA NA
UFMG E FEZ PÓS-GRADUAÇÃO NA
UNIVERSITE CATHOLIQUE DE
LOUVAIN, EM BRUXELAS.
VIVEU TAMBÉM NO RIO DE
JANEIRO(RJ), EM LONDRINA (PR)
E EM NOVA PETRÓPOLIS (RS).
ATUALMENTE, RESIDE EM BELO
HORIZONTE ONDE FOI PROFESSORA
UNIVERSITÁRIA E CONSULTORA
DE MODA
POETA E ESCRITORA, “THEODORE
ESTÁ ME TRAINDO” É SEU PRIMEIRO
LIVRO DE CONTOS & CRÔNICAS.”