(Diogo Zacarias/MF//)

No Brasil, poucos hábitos políticos são tão persistentes quanto a crença de que problemas estruturais podem ser resolvidos com remendos oportunistas — quase sempre às custas do bolso do contribuinte. O governo Lula segue convicto essa tradição. Diante do desequilíbrio das contas públicas, o presidente exibe um apetite insaciável por arrecadar, preferindo aumentar impostos a enfrentar o custo político de cortar gastos e promover reformas. A Medida Provisória 1.303, que perdeu validade no último dia 9 após ser retirada da pauta de votação pela Câmara, é o exemplo mais recente dessa lógica. O texto alterava regras de tributação sobre investimentos e ativos financeiros, funcionando, na prática, como compensação à decisão do governo de recuar na elevação de alíquotas do IOF, tentada em junho. Com a MP, o Planalto esperava obter 17 bilhões de reais no próximo ano, valor essencial para alcançar a meta de superávit primário de 0,25% do PIB, o equivalente a 34 bilhões de reais. Sem a medida, Lula viu ruir uma das principais fontes de reforço de caixa previstas para 2026. O revés fez o presidente reagir como de costume: buscar novas fontes de receitas. “O cacoete desse governo é aumentar impostos”, diz Marcus Pestana, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), vinculada ao Senado. “A agenda de Lula agora se resume a correr para tapar o buraco fiscal.”

O Planalto reagiu à derrota com a estratégia de transformar o fracasso em narrativa política, recorrendo novamente ao bordão da luta entre “pobres e ricos”. De uma forma cínica, a MP 1.303 passou a ser apresentada como instrumento de “justiça tributária”, e não de aumento de impostos. Na versão do governo, sua rejeição refletiu a resistência das elites a apoiar medidas favoráveis à população mais carente. Na mesma noite em que o texto saiu da pauta, Lula foi às redes sociais afirmar que a decisão não representava “uma derrota imposta ao governo, mas ao povo brasileiro”, por “limitar políticas públicas e programas sociais que beneficiam milhões de pessoas”.

O discurso ganhou o endosso do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Antes visto por empresários, investidores e economistas como uma voz moderada — ainda que solitária no Planalto — em defesa da responsabilidade fiscal, o ministro parece hoje mais empenhado em financiar as promessas do chefe do que em promover o ajuste necessário nas contas do país. Em audiência na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, na terça-feira 14, Haddad classificou a proposta rejeitada pelos deputados como “muito justa” e garantiu que o governo encontrará outras formas de compensar a arrecadação perdida — ou seja, nem pensar em refazer a proposta tendo como premissa o corte de gastos.

Na batalha do tudo por dinheiro, uma das possibilidades é o Planalto tentar novamente uma mordida no IOF, algo que na nova configuração poderia render quase 20 bilhões de reais em 2026 (veja o quadro). Essa e outras medidas se somariam a trechos da MP 1.303 que não enfrentaram resistência da oposição, a exemplo da compensação de tributos federais, que poderia injetar cerca de 10 bilhões de reais nos cofres públicos no próximo ano. Em contrapartida ao aumento da arrecadação, o governo colocou na mesa medidas tímidas de contenção de despesas. Uma delas seria a redução de 4,8 bilhões de reais no programa Pé-de-Meia, que concede incentivo financeiro a alunos do ensino médio.

Em busca de apoio para reapresentar alguns trechos da extinta MP 1.303, o ministro Fernando Haddad e o líder do governo no Senado, Randolfe Rodrigues (PT-AP), reuniram-se na quarta-feira 15 com o presidente da Casa, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP). Com a base governista em frangalhos na Câmara, o eventual respaldo de Alcolumbre pode ao menos assegurar uma tramitação mais estável no Senado — instância que, com frequência, funciona como amortecedor das tensões entre o Planalto e a oposição. “Os senadores não resolverão todos os problemas de Lula, mas podem livrá-lo de algumas arapucas e pautas-bomba lançadas pela Câmara”, afirma o cientista político Antonio Lavareda.

Outra parte da MP 1.303 que pode voltar ao Congresso é a que aumenta de 12% para 18% a tributação das casas de apostas on-line, as chamadas bets, sobre a receita bruta. A medida renderia cerca de 1,7 bilhão de reais ao Tesouro em 2026. Durante a tramitação do texto na Câmara, a pressão das empresas do setor e a resistência da oposição levaram o relator, deputado Carlos Zarattini (PT-SP), a costurar um acordo: manter a alíquota atual em troca da criação de um regime especial de regularização fiscal. O mecanismo permitiria a declaração voluntária de bens e recursos omitidos por bets ou apostadores, mediante o pagamento de 15% de imposto de renda sobre o valor declarado e uma multa adicional de 100%. Nas estimativas de Zarattini, a medida geraria até 5 bilhões de reais em arrecadação.

O governo também tenta ressuscitar o dispositivo da MP 1.303 que eleva a tributação das fintechs. O texto original extinguia a alíquota de 9% da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e passava a enquadrar os bancos digitais em apenas duas faixas: 15% ou 20%, conforme o porte da empresa. A mudança renderia cerca de 1,6 bilhão de reais aos cofres públicos. Para a equipe econômica, a medida corrige distorções, já que o setor reúne companhias que rivalizam com grandes bancos, mas ainda se beneficiam de regras criadas para pequenas startups. O argumento é contestado. “Não é verdade que as grandes fintechs pagam menos impostos”, afirma Eduardo Lopes, presidente da Zetta, entidade que representa o setor. “A alíquota efetiva paga pelas maiores fintechs é de 29,7%, enquanto a dos bancos é de 12,2%.”

Ressuscitar a MP 1.303 rejeitada pela Câmara não é a única aposta de Lula para reforçar o caixa e sustentar seu projeto político. A equipe econômica também mira a revisão dos benefícios fiscais — os chamados gastos tributários — concedidos a empresas e setores. Segundo a Fazenda, esses incentivos somam cerca de 800 bilhões de reais por ano. “Apoiamos a revisão desses gastos”, afirma Isaac Sidney, presidente da Febraban, entidade que representa os bancos. “Eles alcançaram um patamar fora do razoável e comprometem a própria sustentabilidade da dívida pública.” O consenso, porém, para por aí. A indústria resiste à proposta e argumenta que já é sufocada pela alta carga tributária, que chegou em 2024 ao maior nível da história: 34,2% do PIB, segundo o Observatório de Política Fiscal da Fundação Getulio Vargas (leia a reportagem na pág. 52). Para Mário Sérgio Telles, diretor de economia da Confederação Nacional da Indústria, o risco está na ideia de um corte linear de 10% em todos os incentivos. “É preciso analisar caso a caso para separar os que ainda fazem sentido dos que se tornaram ineficientes”, diz.

Ao priorizar o aumento da arrecadação e adiar o corte de despesas, Lula repete o padrão que marca seu terceiro mandato — algo que tende a piorar diante da proximidade do calendário eleitoral. Desde 2023, o governo já lançou mais de vinte iniciativas — bem-sucedidas ou não — de elevação de impostos. A insistência rende combustível à oposição nas redes sociais, novo campo de batalha da política. Não por acaso, multiplicam-se os memes em que Fernando Haddad aparece apelidado de “Taxad”. Enquanto isso, o Planalto desperdiça oportunidades de promover ajustes estruturais. A reforma administrativa continua paralisada na Câmara por falta de apoio da base aliada, e as privatizações desapareceram do radar. A omissão cobra seu preço: os Correios, retirados do programa de desestatização no início do governo, voltaram a pressionar os cofres públicos com um rombo bilionário e a necessidade de um empréstimo de 20 bilhões de reais, tendo o Tesouro como fiador.

A desconexão da realidade também aparece no Orçamento proposto para 2026. As premissas econômicas que sustentam a peça são bem mais otimistas do que as do mercado. O governo, por exemplo, projeta um crescimento real do PIB de 2,4% — já descontada a inflação — enquanto as estimativas do mercado apontam apenas 1,8% de expansão. A questão não é apenas técnica: dela depende o volume de arrecadação. Com base em seu cenário mais favorável, o governo prevê receitas de 2,6 trilhões de reais no próximo ano, ante 2,5 trilhões calculados pela Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado. A diferença não é nada sutil: enquanto o governo projeta um superávit primário de 34 bilhões de reais nas contas públicas, a IFI estima déficit de 45 bilhões. Para zerar o rombo e ainda cumprir a meta, seria necessário economizar quase 80 bilhões — algo claramente fora dos planos de Lula. “A culpa pela crise fiscal não é da oposição”, afirma a economista Zeina Latif. “O governo não se preparou para chegar a 2026 com as contas em ordem.”

O governo Lula chega ao fim de 2025 em meio a um perigoso descompasso entre discurso e realidade. As promessas de responsabilidade fiscal se perdem diante de medidas populistas, metas inatingíveis e um orçamento cada vez mais engessado. O resultado é um país vulnerável, com as finanças à beira da exaustão. “O colapso da máquina pública pode vir antes de 2027, porque faltará dinheiro para atividades básicas”, alerta Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda e colunista de VEJA. “O Brasil já tem um encontro marcado com uma grande crise.” A menos que o governo rompa com a lógica da conveniência política, o país não apenas continuará empacado — mas caminhará, passo a passo, para a ruína anunciada de suas próprias contas.

Fonte: Veja

Fonte: Diário Do Brasil

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Governo Lula recorre à fórmula ineficaz de elevar impostos em vez de cortar gastos