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A notícia de que 80% da vila de Jericoacoara, um dos destinos mais visitados do litoral brasileiro, ficam dentro de uma propriedade privada e cuja “dona” só surgiu recentemente, mais de 40 anos após a compra do imóvel na região, gerou muitas perguntas. Um dos questionamentos mais recorrentes é sobre o porquê de ela ter aparecido só agora, com toda a documentação, e requerendo a devolução de parte das terras.

Iracema Correia São Tiago ficou com três fazendas na região de Jericoacoara – Junco I, Junco II e Caiçara -, após se divorciar do então marido, José Maria de Morais Machado. Eles terminaram em 1992, mas a separação só foi homologada em 1995. Ele era um industrial, do setor de couros e cera de carnaúba, e investia na aquisição de propriedades rurais – especialmente, a partir de 1979.

Em 1983, conforme as datas das escrituras e documentações apresentadas por Iracema, José Maria adquiriu glebas de terra na região de Jericoacoara, que, juntas, formaram as fazendas Junco I e Junco II. À época, não existia ainda o Parque Nacional de Jericoacoara, criado só em 2002, tampouco a badalação vivenciada hoje por moradores e turistas que visitam a famosa vila do local.

Entre 1995, logo após o divórcio, e 2002, Iracema viveu reclusa, voltada para a família e sem acompanhar de perto as propriedades que havia “herdado”. “Ela foi pouquíssimas vezes à vila”, diz o sobrinho Samuel Machado, que tem liderado o desenrolar burocrático da questão. Em 2002, ele e três dos quatro filhos da tia se juntaram para, enfim, regularizar as terras e passá-las para o nome dela.

Um problema maior
A iniciativa coincidiu com o período de criação do parque, na região. Conforme o relato de Samuel, eles buscaram pela documentação nos cartórios da época, fizeram todo o trabalho de georreferenciamento das propriedades e logo perceberam que parte significativa das fazenda seria integrada ao parque, conforme o traçado estipulado pela União.

Desde então, Iracema, enquanto proprietária das terras, briga na Justiça em busca de indenização, já que houve desapropriação de parte das fazendas. O processo segue em tramitação, sem solução prevista. Esse problema, segundo Samuel, tornou-se algo muito maior do que a questão da vila em si e por isso a família buscou resolvê-lo antes.

“Ela só não queria uma briga. Se ela já está com briga no Parque Nacional, que começou em 2002 e até hoje não resolveu, imagine começar uma briga agora, aos 78 anos de idade”, expõe o sobrinho.

Das três fazendas da tia, conforme o levantamento feito por ele e os primos, cerca de 500 hectares da Junco I, 314,6 hectares da Junco II e toda a extensão da Caiçara (958,8 hectares) foram incorporados ao parque. Com isso, restaram as parcelas de terra fora do traçado e a vila de Jericoacoara, que também não faz parte do parque.

Descoberta da arrecadação
Perto das centenas de hectares integrados ao parque, a dimensão da vila que ficava dentro da fazenda Junco I (73,6 hectares) era considerada mínima e Iracema, segundo o sobrinho, sempre soube das pessoas que viviam no local, mas não queria desalojá-las. No decorrer do processo de regularização das propriedades, no entanto, a família foi surpreendida pela informação de que o estado havia arrecadado a vila.

Até 2002, Iracema não sabia que o governo do Ceará havia incorporado o perímetro atual da vila de Jericoacoara ao patrimônio estadual, com o intuito de promover a regularização fundiária da região. O processo que havia sido iniciado em 1995 e homologado em 1997 pelo Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace) ocorreu sem que ela fosse comunicada.

À época, Samuel e os primos buscaram orientação de advogados sobre o que poderia ser feito, mas foram informados, erroneamente, de que não havia mais tempo hábil para questionar o estado, em virtude do período decorrido de cinco anos. Só recentemente, após consultar outro escritório de Fortaleza (CE), que eles perceberam que poderiam recuperar, pelo menos, parte das terras, apesar da apropriação do estado.

“Não cabe usucapião em terras do estado e da União. Se ele arrecadou, não existe usucapião na região de Jericoacoara. O estado não pode usucapir. Ele pode desapropriar e indenizar ou arrecadar, quando entende que não tem dono”, explica o advogado Anderson Lamarck.

Dispositivo favorável a Iracema
No texto do procedimento de arrecadação da vila, no entanto, o governo do Ceará deixou um trecho que resguarda o interesse privado. Ele diz o seguinte: “Ficam ressalvados os imóveis de domínio particular que porventura se encontrarem localizados no perímetro da área referida”. A partir disso, os advogados que assumiram o caso perceberam que havia brecha para atuação e questionamento.

Em julho do ano passado, eles protocolaram requerimento junto ao Idace e, posteriormente, o caso passou à Procuradoria-Geral do Estado do Ceará (PGE-CE). Os órgãos reconheceram a autenticidade da documentação e foi proposto um acordo. Dos 73,6 hectares da vila que ficam dentro do perímetro da fazenda Junco I, Iracema deve receber de volta 4,9 hectares, de áreas não ocupadas e sem interesse público.

“As terras nunca foram esquecidas. Só a família que não frequentava o local. Para fazer o acordo [com a PGE], a primeira coisa que tia Iracema disse foi que ela não queria que mexesse com nenhum nativo, morador, comércio, nada. A vila ficaria intacta como ela é hoje. A única coisa seriam as áreas desocupadas, sem uso. Ela pediu o reconhecimento da área toda, mas reivindicou somente as desocupadas”, diz Samuel Machado.

Fonte: Metrópoles

Fonte: Diário Brasil Noticias

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Jericoacoara: por que a ‘dona’ que detém 80% da vila só foi mencionada agora? Entenda