A mecânica quântica pode parecer um campo distante, complicado e, como definiu Albert Einstein, “assustador”, mas cientistas estão descobrindo ligações muito íntimas dela com o nosso corpo — podendo até estar por trás de mutações em nosso DNA, com implicações em doenças genéticas, câncer e até na origem da vida.
Anteriormente, acreditava-se que os sistemas biológicos fossem muito quentes, úmidos e caóticos para que efeitos quânticos como o tunelamento de prótons — quando a forma de onda de uma partícula se espalha e permite sua passagem por barreiras de energia normalmente intransponíveis — ocorresse em locais como o nosso corpo. Agora, estudos mostram que isso pode, sim, ocorrer em organismos, inclusive no DNA. É o que chamamos de biologia quântica.
Biologia quântica e mutações no DNA
Já bastante conhecida, a estrutura do DNA é formada por uma hélice dupla, com duas fitas moleculares se conectando como peças de um quebra-cabeça no centro. Cada uma tem 4 formatos diferentes, que recebem o nome de uma letra. Os formatos T se ligam aos formatos A e os G se conectam com os C, formando o que conhecemos por “pares de base”. Esses braços moleculares ficam conectados por atrações fracas entre os átomos de hidrogênio, que possuem apenas um próton e um elétron.
Em determinados momentos, ocorrem erros, fazendo com que as letras se juntem incorretamente, o que se chama de mutação de ponto. Quando muitas delas surgem, problemas no DNA podem se acumular e gerar câncer ou outras doenças, o que geralmente se dá no momento da replicação. Mutações de ponto também podem ser causadas por exposição excessiva a raios-X, radiação UV ou qualquer coisa que excite os átomos e os faça sair do lugar.
Pesquisadores não sabiam se a mudança de lugar dos prótons entre as ligações fracas do DNA poderiam causar mutações de ponto, mas a resposta, por 50 anos, pareceu ser “não”. Os pares de base gerados pela mudança dos prótons seriam muito instáveis e durariam pouco, sem dar tempo de serem transferidos nas replicações de DNA. Um novo estudo publicado na revista científica Nature Communications Physics, no entanto, notou que tais pares de base podem ser frequentes e estáveis, sendo gerados por processos quânticos.
Para confirmar essas ocorrências, os cientistas replicaram o ambiente celular com partículas vibrantes, mostrando que a transferência de prótons de hidrogênio podem ser muito rápidas nas conexões G:C do centro da hélice de DNA — poucas centenas de femtossegundos, ou 0,000000000000001 de segundo.
É uma taxa muito mais rápida do que a nossa escala biológica. Vale lembrar que o estudo teve suas limitações, já que não observou os pares de base A:T, cujos estados intermediários são mais instáveis e podem não ter um papel considerável nas mutações de DNA.
Implicações biológicas
Ao invés de impedir que os prótons realizem tunelagem quântica, o calor biológico pode, na verdade, estar servindo como um ativador termal, dando energia o suficiente aos prótons para pular para o outro lado. Já notamos que a transferência de prótons por tunelamento quântico é 4 vezes mais provável do que a física clássica havia determinado, e estudos computacionais previram que tais mudanças moleculares podem ser estáveis o suficiente para serem replicadas pelo DNA — gerando mutações.
Mas não precisamos nos preocupar tanto com essas mutações de ponto, apesar de parecerem perigosas — elas deveriam aparecer com mais frequência do que observamos, e os cientistas acreditam que isso não ocorre porque o DNA possui mecanismos de reparo muito eficientes, consertando esses danos antes de percebermos. Nosso maquinário biológico de replicação de DNA, por exemplo, faz uma “leitura de prova”, uma revisão que busca por erros moleculares e os corrige, como um corretor ortográfico.
A facilidade do tunelamento quântico e a longevidade dos estados intermediários das hélices pode até nos ajudar a entender a origem da vida — a taxa de evolução no início das criaturas biológicas estava ligada à taxa de mutação de um RNA de filamento único. Os processos quânticos podem ter sido os responsáveis por nos dar a vida, e, às vezes, por nos tirá-la.
Fonte: Nature Physics, Freethink
Por Augusto Dala Costa (Canaltech)