
Uma nova leva de documentos desclassificados relacionados ao assassinato do ex-presidente americano John F. Kennedy, liberada nesta semana pelo governo dos Estados Unidos, trouxe à tona revelações surpreendentes sobre a política brasileira no início dos anos 1960. Entre os arquivos, um relatório da inteligência americana sugere que os militares brasileiros, ao liderarem o golpe de 1964, podem ter frustrado um plano que envolveria uma ditadura comunista no Brasil, com apoio direto de potências como China e Cuba.
De acordo com o telegrama da CIA datado de agosto de 1961, Mao Tsé-Tung, então líder da China comunista, e Fidel Castro, ditador cubano, ofereceram suporte material – incluindo suprimentos militares e voluntários – ao governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. A oferta teria ocorrido no contexto da crise política desencadeada pela renúncia do presidente Jânio Quadros, em 25 de agosto daquele ano. Brizola, cunhado de João Goulart (conhecido como Jango), liderava a Campanha da Legalidade, um movimento para garantir a posse de Goulart como presidente, enfrentando resistências de setores conservadores e militares que viam no vice-presidente tendências esquerdistas perigosas.
O documento relata que Brizola rejeitou a ajuda externa, temendo que sua aceitação pudesse “criar um incidente internacional” e provocar uma intervenção direta dos Estados Unidos no Brasil. Apesar da recusa, a CIA interpretou a oferta como um sinal claro das intenções de Havana e Pequim de expandir a influência comunista na América Latina, usando o Brasil como um potencial palco para essa estratégia. “Brizola obviamente temia que, se aceitasse, os EUA poderiam intervir”, destaca o relatório, que também menciona que a proposta de Castro vazou para a imprensa na época, enquanto a de Mao permaneceu em segredo.
### Contexto histórico: O medo de uma “segunda Cuba”
A revelação ganha peso quando analisada no contexto da Guerra Fria, período em que os Estados Unidos estavam obcecados em conter o avanço do comunismo no hemisfério ocidental, especialmente após a Revolução Cubana de 1959. João Goulart, que assumiu a presidência em setembro de 1961 sob um regime parlamentarista temporário, era visto com desconfiança por Washington. Suas reformas de base, incluindo a proposta de reforma agrária, e sua tolerância com movimentos de esquerda alimentavam temores de que o Brasil pudesse seguir os passos de Cuba.
Outro documento da CIA, de julho de 1964 – já após o golpe que depôs Jango –, reforça essa narrativa. O relatório aponta que a queda de Goulart foi uma “dura derrota” para os planos de Fidel Castro, que via em Cuba “a maior fonte de inspiração para revoluções na América Latina”. Apesar disso, Havana continuou a financiar e apoiar grupos revolucionários na região, incluindo Brasil, Argentina e Chile, nos anos seguintes.
### O golpe de 1964: Uma resposta preventiva?
Os novos arquivos reacendem o debate sobre as motivações do golpe militar de 31 de março de 1964, que instaurou uma ditadura de 21 anos no Brasil. Para os militares e seus aliados na época – que incluíam setores do empresariado, da Igreja Católica e da classe média –, a deposição de Goulart era uma questão de “salvar a democracia” de uma suposta ameaça comunista. A oferta de Mao e Castro a Brizola, agora documentada, pode ser interpretada como uma evidência concreta que justificava esses temores, ainda que o próprio Brizola tenha rejeitado o apoio.
Historiadores, no entanto, divergem sobre a real extensão do perigo. Enquanto alguns defendem que Goulart nunca foi um comunista convicto, mas sim um trabalhista com políticas nacionalistas, outros apontam que a radicalização de figuras como Brizola e as Ligas Camponesas poderia ter aberto espaço para uma guinada à esquerda mais extrema. “Jango não era comunista, mas o contexto internacional e as alianças que ele tolerava criavam um cenário de incerteza que os militares exploraram”, avalia o professor de história contemporânea Marcos Silva, da Universidade de São Paulo.
### EUA e a sombra da intervenção
Os documentos também jogam luz sobre o papel dos Estados Unidos na crise brasileira. Em outubro de 1963, apenas 46 dias antes de seu assassinato, Kennedy discutiu com o embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon, a possibilidade de uma intervenção militar direta para depor Goulart. “Acha aconselhável que façamos uma intervenção militar?”, perguntou o presidente, segundo gravações já conhecidas da Biblioteca JFK. A Operação Brother Sam, que previa o envio de uma força naval americana à costa brasileira, foi planejada ainda no governo Kennedy e executada sob Lyndon Johnson, mas acabou não sendo necessária diante do sucesso rápido do golpe militar local.
### Um capítulo reaberto
A divulgação desses arquivos, autorizada pelo presidente Donald Trump em um esforço de transparência, reacende discussões sobre os eventos que moldaram a história recente do Brasil. Para alguns, os documentos reforçam a tese de que os militares agiram para impedir uma ditadura comunista apoiada por potências estrangeiras. Para outros, tratam-se de evidências de como a paranoia da Guerra Fria e a intervenção americana distorceram a democracia brasileira, pavimentando o caminho para duas décadas de repressão.
Enquanto o debate segue, uma coisa é certa: os ecos daquele 1961 ainda ressoam, agora amplificados por essas novas peças do quebra-cabeça histórico. A pergunta que permanece é se o Brasil esteve, de fato, à beira de uma revolução comunista – ou se o medo dela foi o verdadeiro motor de sua tragédia política.

Fonte: Diário do Brasil