A crise na Ucrânia começou a escalar em meados de novembro de 2021 e, desde dezembro, os Estados Unidos anunciam que uma invasão da Rússia ao país vizinho é “iminente”. A tensão se intensificou esta semana, quando o presidente russo, Vladimir Putin, decidiu reconhecer a independência de duas regiões separatistas no leste da Ucrânia, um movimento que pode servir de pretexto para a entrada de tropas russas no país.
As hostilidades entre Rússia e Ucrânia não são novas e remontam ao fim da Guerra Fria. Mas uma série de acontecimentos recentes, que incluem crises internas, expansão de esferas de influência e revoltas pró-democracia ajudam a explicar por que Putin escolheu este momento para avançar novamente contra seu vizinho.
- A visão de “um só povo”
Em discurso à nação nesta segunda-feira, 21, Putin fez questão de contestar o status da Ucrânia enquanto nação soberana. “A Ucrânia nunca teve uma tradição de um Estado genuíno”, afirmou, acrescentando que a Ucrânia moderna “foi inteiramente criada pela Rússia comunista” e atribuindo à Vladimir Lênin a “autoria” do país.
O discurso de “um só povo”, que divide uma mesma história – a Ucrânia é uma ex-república soviética – vem sendo usado pelo presidente russo há anos. “Putin afirmou durante a campanha eleitoral de Viktor Yanukovich em 2004 que considerava a Rússia e a Ucrânia como um só povo, ligados por religião, cultura e idioma”, explica o professor de História da Rússia e do Leste Europeu na Universidade de Alberta David Marples. “Ele repetiu o sentimento várias vezes desde então e não reconhece a independência da Ucrânia nem a validade de um Estado ucraniano.”
Com a aproximação entre a Ucrânia e os Estados Unidos, Putin vem investindo na ideia de que o país vizinho é um “irmão mais novo”, “desviado” pelo Ocidente e pelo qual vale a pena lutar, visando a uma reintegração “familiar”. - Expansão da Otan
O interesse ucraniano de entrar para a Otan vem sendo apontado como a principal causa da crise. Para a doutora em Ciência Política e membro do think tank russo Russian International Affairs Council Ekaterina Chimiris, no entanto, essa possível candidatura não é a única razão para o conflito. “Motivos adicionais são a expansão da Otan para outros países e forças nativas adicionais da Otan perto de nossas fronteiras”, afirma.
Criada em 1949 com o objetivo de promover segurança coletiva contra a União Soviética, a aliança era composta inicialmente apenas por países ocidentais. A partir de 1999, no entanto, a Otan passou a se expandir para a Europa central e o leste europeu, um movimento que a Rússia vê como uma ameaça à sua hegemonia na região.
Em 2008, a aliança prometeu que duas ex-repúblicas soviéticas – Geórgia e Ucrânia – seriam um dia aceitas como membros, enfurecendo o Estado russo. A candidatura da Ucrânia se tornou oficial em 2018, embora não haja qualquer garantia de que a junção vá acontecer em breve. Pelo contrário, França e Alemanha já se opuseram à adesão no passado – em grande parte buscando não criar atritos com a Rússia – e as nações já citaram problemas persistentes de corrupção e um estado de direito fraco como motivos para não inserirem a Ucrânia na aliança. - O fator Zelenski
A relação da Rússia com os dois presidentes ucranianos mais recentes também podem ajudar a explicar a crise, defende Marples.
Empossado após as revoltas civis de 2013-2014, Petro Poroshenk baseou sua campanha no tripé “nação, igreja e exército”, uma postura abertamente hostil à Moscou, explica. Ele também teria ignorado o compromisso da Ucrânia com os Acordos de Minsk de 2015, falhando em conceder autonomia às regiões de Donetsk e Luhansk, reconhecidas pelo presidente russo esta semana.
E embora sua derrota tenha sido vista de maneira positiva por Moscou, o novo presidente eleito, Volodmir Zelenski, decidiu dar continuidade às políticas do seu antecessor. Ele também reprimiu apoiadores russos dentro de seu país, fechou um popular site pró-Rússia, e colocou a principal figura política pró-Rússia, Viktor Medvedchuk, em prisão domiciliar. - Ameaças no quintal
A ameaça à Ucrânia também é uma tentativa de reverter uma tendência anti-russa entre os vizinhos de Moscou, defende Marples.
Em Belarus, manifestantes se reuniram em protestos massivos contra o presidente Alexander Lukashenko, aliado de Putin, enquanto a principal rival do ditador, Sviatlana Tsikhanouskaya, percorria a Europa pedindo apoio de países ocidentais. No final de 2021, o governo do Casaquistão, liderado por outro aliado da Rússia, Nursultan Nazarbayev, também enfrentou grandes revoltas. E embora nenhum dos movimentos tenha alcançado algum sucesso, Putin não ignora que há um grande descontentamento em ambos os Estados. Ele atribui a instabilidade à interferência ocidental. - Crises internas
Putin enfrenta suas próprias questões internas. A Rússia tentou mostrar força durante a pandemia de covid-19, buscando liderar a corrida pelas vacinas, mas o fármaco desenvolvido no país caminhou pouco no mundo. Além disso, a Rússia foi um dos países mais atingidos pela doença, apesar dos esforços para mascarar parte desses dados.
A economia também entra no jogo. “Putin planejou mudanças constitucionais para se manter no poder indefinidamente. Mas a Rússia é uma potência de armas nucleares com um exército poderoso que não pode competir economicamente como uma grande potência. Sua economia é baseada em recursos não renováveis e seu PIB é cerca de metade do do Estado da Califórnia”, explica Marples. “Assim, crises econômicas cíclicas, causadas pela alta e queda dos preços do gás e do petróleo, são inevitáveis e prejudicam a popularidade de Putin. Um sucesso de política externa poderia diminuir esses problemas em casa, é uma política frequentemente usada por líderes ditatoriais.” - Aprovação popular
Em 2021, a confiança em Putin caiu para seu nível mais baixo desde 2012, indicam dados do Levada Center, uma organização de pesquisa russa independente. À época, o estudo descobriu que 53% dos entrevistados confiavam no líder russo, contra 71% em setembro de 2017.
Os índices de aprovação de Putin foram reduzidos por uma série de medidas impopulares, incluindo uma ampla reforma previdenciária em 2019, bem como pela estagnação do padrão de vida dos russos, que caíram a níveis não vistos desde 2012.
Para o professor do Instituto Aleksanteri – Centro Finlandês de Estudos Russos e do Leste Europeu Vladimir Gel’man, essa questão é relevante. “Certamente, o conflito internacional e a mobilização pró-Kremlin são considerados uma solução plausível para fatores domésticos importantes, relacionados ao declínio da popularidade de Putin para as próximas eleições presidenciais de 2024”, afirma. “Certamente o conflito internacional e a mobilização pró-Kremlin são considerados uma solução plausível para esse problema. O Kremlin gostaria de repetir a experiência de 2014, quando a taxa de aprovação de Putin disparou após a anexação da Crimeia.”
Ekaterina Chimiris afirma que uma guerra neste momento poderia não contribuir positivamente para a imagem de Putin internamente. “Claro que para a maioria dos russos, a verdadeira guerra é absolutamente inaceitável”, diz. No entanto, explica, ter um exército forte que proteja os países do entorno da Rússia também é importante para o povo russo. “Agora a Rússia é considerada a protetora. Falando em palavras simples, nós pensamos: ‘Nosso país é muito forte. Nosso país é muito forte porque temos esse exército e temos potencial para proteger nossas fronteiras, mas não somos invasores ou algo assim”, explica. - Demonstração de força
Mas especialistas pontuam que a principal motivação de Putin, neste momento, é a demonstração de força contra as potências ocidentais, em um esforço com fins tanto internacionais quanto internos.
“O principal objetivo da Rússia agora é, de alguma forma, mostrar que ainda temos essa capacidade de superpotência. Que ainda temos nossa voz na arena mundial e que ninguém pode criar regras para nós. Assim como não vamos fazer novas regras para o mundo”, diz Chimiris.
Ela explica que a narrativa ocidental, em especial na imprensa, é vista como uma força agressiva para a Rússia, principalmente quando essa narrativa é expandida para todos os países da Otan juntos. “O ocidente, como um ator coletivo, é uma ameaça na visão russa. A Rússia se sente muito insultada pelos discursos agressivos dos políticos ocidentais de que produzimos apenas propaganda, nacionalismo e assim por diante. Os principais valores para os russos hoje é nosso legado histórico sobre a segunda guerra mundial e o chamado mundo russo e o uso da língua russa nos países mais próximos. Isso é muito importante para nós.”
O timing para a demonstração de força parece ideal, em um cenário de nações ocidentais enfraquecidas. “(O presidente americano Joe) Biden chegou ao poder com muitas expectativas, mas tem um mandato muito enfraquecido já no começo do segundo ano. Isso altera o cálculo de quem quer enfrentar os EUA, explica Vinicius Rodrigues Vieira, professor de Relações Internacionais da Faap. “Uma das potenciais razões (para a invasão neste momento) seria justamente aproveitar o momento de fragilidade do presidente americano, fragilidade que Putin pode inclusive ampliar.”
O professor também relembra que a saída de Angela Merkel da chancelaria da Alemanha facilita esse movimento de Putin, já que o novo chanceler, Olaf Scholz tende a agir de forma mais pacífica com essas ações – Olaf se encontrou com Biden e depois com Putin em uma mesma semana tentando suavizar as tensões. O Reino Unido também enfrenta as suas próprias tensões internas, com uma economia patinando e Boris Johnson na berlinda após festas durante a quarentena. E a França passa este ano por eleições que, invariavelmente, se tornam o foco dos políticos do país. “Do lado ocidental é uma tempestade perfeita para que alguém que é muito engenhoso, do ponto de vista da diplomacia internacional, como é o Putin, venha a fazer esse tipo de ação”, diz Vieira.
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