Para o Garcez a vida sempre foi uma aposta e ele sabia como ninguém onde encontrar alguém disposto a encarar um desafio para angariar nem que fossem alguns trocados para o café. O Bar Marrocos e as calçadas da Av. Sampaio Vidal eram o seu principal habitat e ali ficava na espreita da melhor oportunidade para sacar a caixa de fósforos do bolso e fazer o convite: “joga um palitinho?”
O jogo é simples, basicamente cada jogador recebe três palitos e na rodada cada um dos participantes estende uma das mãos fechada à sua frente escondendo um número de palitos aleatório. Quando todos assim o fazem é hora dos palpites e ganha aquele que adivinhar a quantidade de palitos apresentada na roda. Num jogo entre quatro pessoas, por exemplo, na rodada há possibilidade de até doze palitos ocultos nas palmas das mãos.
Quem acerta o palpite da quantidade exata de palitos passa a jogar com um a menos e assim vai até eliminar todos. Parece algo simples, mas a habilidade está em memorizar a quantidade de palitos que cada um têm e as possibilidades da somatória, isso sem dizer que é preciso um estudo intuitivo sobre cada um dos jogadores.
Garcez era bom nisso como ninguém, parece que entrava na mente das pessoas e na maioria das vezes saia vencedor. Dali ele tirava o almoço, a cervejinha da tarde, o pingado com Bauru. Depois subia para o carteado que corria frouxo no andar superior do prédio do Bar Marrocos.
Da chapa quente e da cozinha subiam pratos e porções para matar a fome de quem estava na rodada do carteado e não podia sair por motivo algum, quando muito para uma desaguada rápida e ligeira e voltar pra mesa. A conta era combinada antes; quem perdesse pagava tudo. Tinha rodada que começava na manhã da sexta-feira e só acabava no sábado bem de tardezinha.
Ocorreu que Garcez perdeu e ainda ficou endividado para uma próxima rodada. Conhecido pelas suas promessas não cumpridas de pagamentos de empréstimos, já não sabia mais onde conseguir algum para voltar na mesa e tentar a sorte. Não desistiu, afinal, ele se honrava de ter o apelido de Gastão, uma referência àquele velho personagem do almanaque do Tio Patinhas e que tinha muita sorte na vida.
Foi quando andando pela Rua 4 de abril, ao passar em frente a pastelaria do China, teve uma luz. Ajeitou o cabelo, botou um ar de simpatia na cara e alegando comemorar seu aniversário com amigos encomendou 100 pastéis. No início o oriental desconfiou, já conhecia a figura, porém com um pouco de boa conversa concedeu o pedido e combinaram para entregar às 13 horas do dia seguinte.
Detalhe importante é que a rodada do carteado onde deveria pagar a dívida contraída começava no mesmo horário.
Ato seguinte procurou o dono da lotérica da esquina que ficava bem ao lado da pastelaria, porque sabia que ele sempre tinha recursos disponíveis. Estava complicado porque já devia ao mesmo cinquenta cruzeiros e precisava de mais cem para entrar no jogo. Depois dos cordiais cumprimentos, na maior cara de pau pediu o dinheiro emprestado. O grandalhão negou e já argumentou que se não conseguia pagar dívida anterior, não pagaria novo empréstimo.
Foi aí que Garcez disparou: “Mas eu tenho cem para receber do China”. – Duvido, disse o comerciante, onde já se viu alguém dever para você, é mais fácil galinha criar dentes. – Pois então vamos ali conferir.
Horário de almoço, pastelaria lotada, o China lá no fundo da loja em cima do tacho quente e pingando em bicas enquanto fritava os famosos pastéis de palmito. Da calçada Garcez gritou: China sabe aqueles cem que fiquei de pegar com você? – Sim, respondeu ele em meio ao vozerio e barulho da moenda de garapa. – Então, entrega na mão dele; e fez isso apontando para o amigo que o acompanhava no tira prova. –Ta certo, fica combinado assim, passa aqui às 13 horas e pode pegar.
Pronto. Era a promissória verbal que Garcez precisava para conseguir novo empréstimo.
Voltou para a mesa e num ato de sorte divina faturou até o início da noite mais do triplo do que apostou e ainda por cima ganhou na milhar do jogo do bicho . Pagou a dívida, recolheu os ganhos e saiu. Antes que os amigos ficassem mais furiosos foi até a pastelaria e pagou o China que até então não havia entendido nada.
Depois correu na lotérica. Um cheiro de pastel tomava conta do ambiente, e outra vez, na maior cara de pau perguntou para a simpática mocinha de onde vinha aquele cheirinho de fome. Teve como resposta que parecia que a coisa tava muito esquisita.
Ele chegou do almoço com duas caixas de pastéis debaixo dos braços e injuriado se trancou no escritório. De lá não saiu mais e só o ouviram gritar que era muito burro por ter caído nessa de novo.
Gastão meteu a mão no bolso, tirou 150 cruzeiros e pediu para ela entregar para ele e que saberia do que se tratava. Ajeitou o pequeno chapéu na cabeça, passou o lenço no sapato branco para tirar a poeira e seguiu seu caminho.
No dia seguinte cruzou bem cedinho o amigo comerciante no Bar Marrocos e não teve pudor algum de propor: – Arrisca um palitinho, vai que é seu dia de sorte.
Ivan Evangelista Jr. é pesquisador e membro da Comissão de Registros Históricos de Marília, fotógrafo e articulista.