No dia 13 de maio de 1888, o Brasil, após longa batalha abolicionista, com idas e vindas, sancionou a Lei Áurea, o que finalmente libertava, seres transformados em objetos. Enfim homens e mulheres seriam livres para trabalhar, lucrar, investir, constituir família e participarem da vida cívica. Ledo engano. Não obstante essa e outras leis tentarem enxugar esse gelo, seres humanos, de todas as classes sociais, etnias e culturas continuam sendo transformados em objetos de satisfação do hedonismo. O fenômeno da coisificação do ser vai desde o tráfico de órgãos, prostituição infantil e exploração de imigrantes; até engenharia genética, manipulação da mídia e inteligência artificial. Alguém está usando pessoas e alguém está sendo usado nesta gangorra de interesses. Por definição, coisificar é tratar pessoas como objetos. É o ato de reduzir alguém à sua significação puramente material. Em outras palavras, coisificação do ser humano é aproveitar-se de outras pessoas apenas para tirar proveito ou ter alguma vantagem; é usar pessoas como se fossem coisas.

uma antiga preocupação
O fenômeno é tão antigo quanto o Éden, mas teoricamente a “coisificação do ser” passou a ser identificado na Revolução Industrial e permeia a histórias por todos os seus vieses. Na antiga Roma, os cidadãos da elite tinham um sobrenome que lhes conferia honra e dignidade herdadas pelos antepassados, o que não era direito da plebe. Os menos favorecidos eram conhecidos por um nome popular e pela função, como que um apelido, por exemplo, “José, o ferreiro”. A identidade resumia-se àquilo que produzia para a sociedade no momento, sem qualquer respeito à sua história de vida ou laços familiares. Em 1915, o best seller “A Metamorfose” do escritor tcheco Franz Kafka, expressou muito bem a coisificação do ser, tendo como protagonista Gregor Sams, um jovem que mantinha a família, a casa, as despesas, os cuidados… Mas ao rebelar-se contra a condição de ser amado em razão de ser o “super alicerce”, perdeu seu emprego e a seguir a estima e admiração dos seus. A história é uma crítica à sociedade e a inversão dos valores, perfeitamente adaptável à pós modernidade, o que consagrou Kafka como um escritor à frente do seu tempo.

um mal incontido
Como escreve o sociólogo Boaventura S. Santos, “a realidade parece ter tomado definitivamente a dianteira sobre a teoria”. Em outras palavras, essa fila não apenas andou… correu; e quando tentamos entender o fenômeno, ele já nos atropelou. A escritora Dra. Maria A. Minahim, no livro “Direito Penal e Biotecnologia” nos alerta: “A história comprova que, ao construir sua trajetória, a espécie humana deixou marcas preocupantes quanto á sua capacidade de destruição” e isso parece ser de forma gradual, ascendente e sistemática. O quadro piora quando ser humano passa a aceitar, pacificamente, a superioridade das coisas e a inferioridade do ser. Meu amigo, o Dr. E. Michellon em seu trabalho “O Dinheiro e a Natureza Humana” postula que estamos a era do “moneycentrismo” – as cifras estaquearam o centro da vida – e dificilmente conseguiremos divisar outra possibilidade de cerne.

Voltando-se para a Bíblia
Você já pensou no fato de que para algumas pessoas você é uma coisa? Já se deu conta de que, em certos círculos, de “imagem e semelhança de Deus” você foi reduzido a uma lista de resultados que produziu? Ou então, já se flagrou equiparando-se a uma máquina ligada no automático, conformada com a troca de papéis? Nós, os cristãos, em meio a este mundo tenebroso, precisamos de discernimento sobre os tempos. Paulo, o apóstolo escreveu aos crentes em Éfeso: “Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados, nos quais andastes outrora, segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe da potestade do ar, do espírito que agora atua nos filhos da desobediência” (Ef 2:1-2). De acordo com R. N. Champlin, a expressão grega no texto para “o curso deste mundo” pode ser traduzida como “espécie de ação de vida que caracteriza certo período de tempo”. Cabe ressaltar que o espírito da época não necessariamente é de origem maligna, nem devemos demonizá-lo. Por exemplo, o avanço da tecnologia é benéfico para a medicina, comunicação e transporte, mas há um limiar quase imperceptível entre a “fila” e o “atropelamento”.

Velhos e bons antídotos
Zygmunt Baumann, sociólogo polonês, identificou o “amor líquido”, como o sentimento rápido, interesseiro e egoísta. Pessoas amam pessoas apenas por razões que dizem respeito ao momento. Tal coisificação da alma foi profetizada pelo apóstolo Paulo, escrevendo a Timóteo: “Sabe, porém, isto: nos últimos dias, sobrevirão tempos difíceis, pois os homens serão egoístas, avarentos, jactanciosos, arrogantes, blasfemadores, desobedientes aos pais, ingratos, irreverentes, desafeiçoados, implacáveis, caluniadores, sem domínio de si, cruéis, inimigos do bem, traidores, atrevidos, enfatuados, mais amigos dos prazeres que amigos de Deus, tendo forma de piedade, negando-lhe, entretanto, o poder.” (2 Tm 3:1-5). Pelo menos quatro das características dos homens dos últimos dias estão diretamente ligadas ao tema em voga: egoístas, avarentos, ingratos, amigos dos prazeres… Em 1 Co 13:5 Paulo definindo o perfeito amor, descreve: “…não atenta para seus interesses, …” e em Fl 2:3-4 ele nos adverte: “Nada façais por partidarismo ou vanglória, mas por humildade, considerando cada um os outros superiores a si mesmo. Não tenha cada um em vista o que é propriamente seu, senão também cada qual o que é dos outros.” A esta face do amor chamamos de empatia. É o pensar como se fosse o outro, agir tentando entender o as nuances do próximo, reagir colocando-se no lugar do outro… É a famosa “troca de cadeiras” na terapia.

Treinando a empatia
Daniel Goleman, na sua revolucionária obra “Inteligência Social”, afirma que podemos treinar emoções e sentimentos, inclusive a empatia. Um dos experimentos citados ajuda a embasar sua tese: “Praticamente desde o nascimento, quando os bebês veem ou ouvem outro bebê chorando, começam a chorar como se também estivessem sentindo a mesma coisa. Depois dos 14 meses de vida, eles não só choram ao ouvirem outro chorar, como também tentam aliviar, de alguma forma o sofrimento do outro bebê. Quanto mais velho ele vai ficando, menos chora e mais tenta ajudar… Nosso cérebro foi predefinido para a bondade.” Tais experimentos nos mostram que ao longo da infância desaprendemos a empatia. Como adultos corremos o risco de nos tornarmos egocêntricos, mas a boa notícia é que podemos treinar nosso cérebro para a afinidade ao outro. Na empatia vemos o próximo como gostaríamos de ser vistos. É o poderoso antídoto para “rehumanizar pessoas coisificadas”.
Que Deus nos ajude neste desafio!

Rev. Marcos Kopeska
Esposo de Gislaine e pai da Gabrielly e Lucas. Pastor da 3ª IPI Marília, presidente do Presbitério Marília e Vice Presidente do Sínodo Sudoeste Paulista. Graduado em Teologia (UMESP), pós graduado em Terapia Familiar Sistêmica (INDEP) e cursando pós graduação em Saúde Mental e Psicossocial (UNIDERP).

Compartilhar matéria no
A coisificação do ser e a contracultura cristã