Nas mais diversas fases da vida, mesmo inconscientemente, processamos o luto, pelo namoro que se desfez, pela expectativa frustrada, pelo emprego perdido, pelas amizades preciosas rompidas e até pela cidade que deixamos numa mudança. Em muitas perdas, a relação com o sagrado nos ajuda na superação. Não obstante, alimentarmos o ideal utópico de nunca perder, ao longo dos últimos dezoito meses, queridos se foram de forma inesperada, rápida e desconcertante. Em todas as culturas e suas confissões religiosas, há uma gama de elementos emblemáticos consubstanciando a morte ao sagrado. O sábio Salomão registrou, há mais de 2900 anos, este conceito universal: “Deus pôs a eternidade no coração do homem” (Eclesiastes 3.11). Cada despedida de uma etapa e a entrada numa nova fase da existência é celebrada com o que chamamos de “rito de passagem”. Contudo, quando tratamos da despedida do temporal e a chegada ao átrio da eternidade, há o pórtico – rito de passagem – mais expressivo. Os judeus reservam-se ao lamento por um espaço de sete dias. No judaísmo, primeiramente, o corpo é lavado por pessoas especializadas da comunidade para que volte a ser como chegou a esse mundo, purificado. Depois é vestido com uma túnica branca e, então, ocorre o velório. Antes do funeral, os familiares do morto rasgam suas próprias roupas, como representação do luto, tristeza extrema e descaso com a matéria. Nos tempos bíblicos os enlutados vestiam-se com sacos e cobriam-se de cinzas. Os hindus optam pela cremação, pois creem que a alma se desprende do corpo para a eternidade através da fumaça. As cinzas são lançadas no Rio Sagrado. Após a cremação, a família é considerada impura e deve tomar um longo banho ao voltar para casa. O período de reclusão dura de sete a quarenta dias. Quando um budista morre, familiares, amigos e um monge oram e despedem-se com calma, já que a morte é uma etapa de um longo processo evolutivo, e não um fim definitivo. Os visitantes levam palavras de consolo para os parentes do morto e também algum dinheiro, para ajudá-los com as despesas do funeral. O corpo é colocado em um caixão, com um rosário budista enrolado nas mãos. Os presentes recitam textos sagrados em coro. Algumas subdivisões dos budistas oferecem alimento e água num altar, como símbolo de desapego do corpo físico. No Islã, após o banho completo no cadáver e seu envolvimento em sua mortalha, a congregação se reúne atrás do imam em frente ao morto. Primeiramente, o imam se direciona a Meca e realiza a primeira oração: “Deus é Maior”. Após o primeiro ato depois da morte, os presentes fecham gentilmente os olhos do morto e repetem uma súplica simples para os afligidos por uma calamidade: “A Deus pertencemos e para Ele é o nosso retorno.” Em países árabes, três dias após a morte, parentes do falecido contratam vários qãri, profissionais que declamam o Alcorão ao lado da sepultura. Alguns rituais nos parecem muito estranhos, como algumas populações do Tibete que não enterram ou cremam os seus mortos. Os cadáveres são transportados para o alto de montanhas com a ajuda de bois iaques, em longas procissões capitaneadas por monges budistas. Lá no alto, os corpos são desmembrados e oferecidos aos abutres, considerados como reencarnações de anjos. Entre as religiões mais comuns ao brasileiro estão o catolicismo e o protestantismo. Os cristãos católicos ainda hoje trazem traços da influência da Idade Média, como por exemplo, encomendar a alma. O velório e o enterro decorrem em sequência, sendo que esse último normalmente é realizado até vinte e quatro horas após a morte. O velório é celebrado com elementos simbólicos peculiares da liturgia. O incenso significa veneração, a água lembra o batismo e as velas simbolizam a vida se queimando ou também, a luz de Deus. Os amigos e familiares também costumam fazer uma oração juntos. Padres ou diáconos tomam parte com uma breve homilia de consolação. Os protestantes cultuam ao Deus da Vida mesmo em meio a tristeza da despedida. Na decoração, apenas as flores homenageiam quem partiu. Adoram a partir das palavras pronunciadas, textos lidos, pregações, testemunhos, canções com mensagens adequadas para o momento e orações espontâneas. A esperança do céu e da eternidade junto a Deus é sempre o ponto alto do culto fúnebre protestante. Na Igreja Metodista, até o momento do sepultamento ainda é parte do culto. O clérigo acompanha a urna funerária e faz a última oração junto ao jazigo. As últimas palavras citadas são: “Entregamos o corpo do nosso irmão …. à sua morada eterna, certos de que seu espírito já está com Deus. O pó retorne à terra, de onde veio, e o espírito volte a Deus, que o concedeu. Amém.” Mas a pergunta que não quer calar é: “Como nos despedir dos queridos que estão morrendo nestes meses obscuros, sem nos despedirmos com as honras que nossas tradições oferecem? Como dar um digno ‘adeus’ com apenas vinte minutos para a despedida, sob o risco da contaminação?” De um momento para o outro as famílias foram impedidas de se reunirem em torno dos seus mortos. Sem dúvida, fica um vazio de significado para os enlutados, inclusive com a dificuldade no processamento do luto. Dilemas semelhantes passaram as famílias dos menonitas, dos batistas alemães e dos judeus mortos nas grandes guerras mundiais, os quais não tinham os corpos dos seus queridos para serem homenageados e velados. Deles vem a célebre ideia do Culto In Memoriam, alguns dias ou meses depois do falecimento. Cultuavam no templo, mas expunham fotos do falecido, traziam testemunhos sobre a vida, cantavam alguns dos hinos prediletos do irmão que foi para Deus e ouviam uma pregação de consolo espiritual. Por fim, os familiares postados na frente do templo, junto ao altar, recebiam os abraços e condolências da comunidade de fé. Pensando nestas ocasiões atípicas, os familiares e os amigos enlutados podem ter algumas opções de rito que preencham este vazio deixado pela ausência das cerimônias de praxe. Podemos reinventá-los, até mesmo de forma on line, preservando da melhor forma possível o significado do ritual. Algumas comunidades de fé têm realizado Culto In Memoriam em forma de live. Hoje há recursos que podem unir centenas de pessoas em um aplicativo. Desta forma o ritual cobre uma parte significativa da vacuidade inerente da ausência do rito, não obstante a frieza de uma transmissão on line. Apesar da dor, podemos reinventar o “adeus” com dignidade. Que Deus nos dê graça e resiliência em tempos núbios.
Marcos Kopeska é Pastor da 3ª I. Presbiteriana Independente, pós graduado em Terapia Familiar, capelão da PM-10º GB, escritor.