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pedido de extradição de Eduardo Tagliaferro, apresentado pelo Brasil à Itália, pode ser prejudicado pelo fato de o juiz responsável pela solicitação, o ministro Alexandre de Moraes (STF), ocupar também a posição de vítima dos supostos crimes de seu ex-assessor no TSE. 

A situação é “altamente inusual” de uma perspectiva europeia, segundo especialistas do continente ouvidos pela Gazeta do Povo, que chegam a relatar nunca terem visto situação parecida na jurisprudência de extradição. Os juristas ouvidos afirmam que a situação pode, em tese, ser alegada na Itália para caracterizar falta de imparcialidade e de um processo justo; e que, se o argumento for aceito pelos tribunais, pode inviabilizar a extradição. 

Exilado no exterior, Tagliaferro foi denunciado por quatro crimes por vazar mensagens de seu celular à imprensa, no intuito de levar a público o que considerava como aspectos imorais ou ilegais das investigações capitaneadas pelo ministro Moraes no TSE e no STF. 

O procurador-geral da República (PGR), Paulo Gonet, citou declarações de Tagliaferro no exterior prometendo mais revelações e as qualificou como “ameaças”, presumivelmente ao ministro Alexandre de Moraes. Com base nisso, Gonet imputou a Tagliaferro os crimes de coação no curso do processo e “tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito”.

Procurada pela Gazeta do Povo, a defesa de Tagliaferro esclareceu que ainda aguarda o andamento oficial do pedido de extradição para definir qual será a estratégia de defesa. 

Situação repetida 

O ministro Alexandre de Moraes também figura como julgador e vítima em outro pedido de extradição envolvendo a Itália: o caso da deputada Carla Zambelli, condenada pelo STF por invadir o sistema do CNJ e inserir falso mandado de prisão que teria sido expedido pelo ministro Alexandre de Moraes contra ele mesmo. Mesmo podendo ser considerado vítima do crime, o ministro atuou como relator do caso e votou pela condenação da deputada, sendo acompanhado pelos outros ministros.

Assim como Tagliaferro, Zambelli tem dupla cidadania, brasileira e italiana. Esse fato não impede, por si só, que sejam extraditados ao Brasil, segundo o advogado e pesquisador italiano Amedeo Barletta, especializado em direito penal transnacional. Segundo Barletta, isso se dá em razão de tratados de cooperação internacional entre Brasil e Itália, que já resultaram em extradições de outros cidadãos binacionais no passado. No entanto, o advogado enfatiza que, por outro lado, esses mesmos tratados não impedem que a Itália negue a extradição se considerar que o processo judicial no Brasil desrespeita garantias fundamentais mínimas, previstas inclusive em outros tratados assinados pela Itália com países europeus.

Direito a um tribunal imparcial

Nesse sentido, o advogado criminalista Eduardo Maurício, mestre em direito pela universidade de Coimbra e especialista em extradição com experiência em casos envolvendo a Itália, enfatiza que a Convenção Europeia dos Direitos Humanos prevê especificamente o direito a ser julgado por um órgão imparcial. A previsão, constante do artigo 6º, aparece como um dos elementos do chamado “direito a um processo justo”. “A Itália, como signatária da Convenção Europeia de Direitos Humanos, está obrigada a considerar essa circunstância ao decidir sobre extradições”, explica o advogado. 

O mesmo artigo da convenção europeia já foi aplicado a casos muito mais brandos que o do ex-assessor do TSE. Em 1982, no caso Piersack vs. Bélgica, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos invocou o artigo para decidir que o réu, condenado por homicídio, não tinha tido direito a um julgamento justo. O tribunal considerou que, embora se tratasse de um julgamento coletivo por júri, o juiz que presidia a sessão não tinha a isenção necessária, porque, em momento anterior da carreira, tinha sido superior hierárquico dos acusadores na procuradoria belga e seu nome tinha aparecido brevemente em trâmites internos envolvendo o mesmo caso. 

Já os casos brasileiros, por envolverem um juiz que também é vítima, apresentam conexão entre julgador e caso de forma muito mais direta.

O advogado criminalista italiano Nicola Canestrini, especialista em extradição que já atuou em casos envolvendo a Operação Lava Jato, afirma que “os juízes italianos poderiam facilmente considerar isso como um obstáculo à extradição”. Ele ressalta que os tribunais italianos são normalmente cooperativos com outros Estados, mas têm histórico de se negarem a extraditar “se a pessoa corre o risco de ser julgada por um tribunal que não é imparcial ou não parece imparcial”.

É a distinção entre imparcialidade “subjetiva” e “objetiva”. No caso Piersack, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tomou o cuidado de esclarecer que não tinha motivos para duvidar da imparcialidade subjetiva do juiz, que não tinha dado sinais de viés pessoal contra o réu. Conforme o tribunal esclareceu, sua objeção era apenas que, mais do que ser imparcial, o julgador precisava também parecer imparcial, o que incluía não ocupar duas posições no mesmo processo.

Já o ministro Alexandre de Moraes corre o risco de ser vetado pelos dois critérios, segundo Canestrini. Nas sessões de julgamento de Zambelli, o ministro debochou da ré pelo crime praticado contra ele próprio: em jogo de palavras com a expressão “inteligência artificial”, Moraes disse que o crime revelaria “burrice natural” da parte de Zambelli. 

Para Canestrini, “comentários depreciativos ou zombeteiros feitos por um juiz em relação a um réu podem ser relevantes num procedimento de extradição, especialmente se o réu for politicamente ativo e os comentários tiverem a aparência de perseguição”.

Revisão do entendimento do STF

O Supremo Tribunal Federal (STF), único órgão judicial dentro do Brasil com poderes para declarar Moraes impedido ou suspeito, rejeitou os pedidos feitos nesse sentido nos casos de Tagliaferro e Zambelli, assim como vem rejeitando a mesma alegação em diversos outros casos em que o ministro figura como vítima. 

Ao votar contra a declaração da própria suspeição no caso Zambelli, o ministro Moraes argumentou que o fato de o falso mandado de prisão ser contra ele “não o transforma em vítima direta da infração penal, mantendo-se a distinção fundamental entre a pessoa física do magistrado e a função jurisdicional por ele exercida”. 

O STF tem a palavra final para decidir se os processos estão cumprindo o direito brasileiro. Mas, conforme explica Anna Oehmichen, advogada alemã que é doutora pela Universidade de Leiden e especialista em extradição, os países europeus, em seu próprio território, não são necessariamente obrigados a deferir ao direito brasileiro, se considerarem que o processo viola os seus próprios padrões de processo justo. Segundo Oehmichen, os Judiciários nacionais em geral se dão “confiança mútua, mas só até certo limite”, e os direitos humanos seriam justamente esse limite, se o Estado estrangeiro considerar que foram violados.

Segundo Oehmichen, em casos similares, é possível até mesmo ao réu alegar aos tribunais europeus que a própria lei brasileira foi violada, se argumentarem que isso constitui indício adicional de violação do direito a um “processo justo”. Por exemplo, Tagliaferro ou outros réus poderiam alegar que, enquanto cidadãos sem foro privilegiado, conforme a Constituição brasileira, deveriam ser julgados na primeira instância em vez de no STF – tribunal que vem frequentemente avocando competência para julgar casos em que seus ministros figuram como vítimas, mesmo quando os acusados não têm foro natural no tribunal.

No entanto, a advogada adverte que essa alegação seria difícil de ser aceita pelos tribunais estrangeiros, que costumam resistir a tentar dar sua própria interpretação à lei de outros países. Nesses casos, explica Oehmichen, o Estado estrangeiro provavelmente faria um pedido formal de informações ao Estado brasileiro para ouvir sua versão antes de decidir.

Efeitos da Lei Magnitsky

Nos Estados Unidos, a Lei Magnitsky foi invocada para sancionar o ministro Alexandre de Moraes por supostas violações de direitos humanos em processos e investigações criminais conduzidas pelo ministro. Os juristas ouvidos pela Gazeta do Povo esclarecem que a lei, americana, não produz efeitos jurídicos na Itália. No entanto, alguns especulam que, ainda assim, as sanções aplicadas pelo governo Trump podem ter alguma influência persuasiva sobre os juízes italianos.

O advogado Nicola Canestrini explica que, se as sanções tiverem algum efeito nesse sentido, será no aspecto probatório: “podem ser levantadas pelos advogados de defesa como um elemento de apoio para argumentar que existam preocupações sistêmicas de direitos humanos em relação à conduta do juiz. Os tribunais italianos não tratariam as sanções americanas como prova vinculante, mas o fato de um Estado democrático aliado ter imposto essas medidas poderia reforçar a percepção de que garantias fundamentais para um julgamento justo estão em risco.” 

Não há consenso entre os juristas a respeito do que deve acontecer a Tagliaferro e Zambelli caso a Itália negue a extradição. Eduardo Maurício pondera que, conforme o Tratado de Extradição Brasil-Itália, o país europeu deve submeter os casos às suas próprias autoridades competentes, para que se possam iniciar ações criminais contra os acusados.

Já Barletta pontua que existe possibilidade de que um acusado se livre completamente de ser processado na Itália: “Se as acusações forem consideradas de natureza política, isso impediria a extradição e evitaria questões envolvendo um hipotético julgamento na Itália.”

Fonte: Gazeta do Povo

Fonte: Diário Do Brasil

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Posição de Moraes como juiz e vítima pode inviabilizar extradição de Tagliaferro