O número de pacientes à espera de algum órgão ou tecido no Brasil beira os 50 mil, segundo dados recentes do Ministério da Saúde. Destes, cerca de 19 mil são apenas de pessoas que aguardam por um transplante de córnea – a segunda maior fila de espera do país. A pandemia afetou diretamente a captação e o transplante desse tecido, de modo que, dentre todos os tipos de transplantes, o de córnea foi o que sofreu a maior queda, com uma redução de 56% de 2019 para 2020, de acordo com o relatório da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. (ABTO).
Localizada na parte frontal do olho, a córnea é uma camada transparente que exerce um papel fundamental na visão, atuando como uma lente que, além de proteger, também é responsável por garantir a entrada de luz para a formação das imagens sobre a retina. Segundo o oftalmologista Dr. Marcello Fonseca, apesar de ser indicado somente em casos mais graves, o transplante desse tecido possui certas vantagens quando comparado a outros procedimentos semelhantes.
“Quando falamos de transplante, um dos maiores riscos é a rejeição do órgão ou tecido pelo organismo do receptor. No caso da córnea, ela possui uma especificidade importante, pois, diferentemente de um rim ou um fígado, por exemplo, ela não possui sangue. Uma vez que as células e os anticorpos responsáveis pela defesa imunológica estão nele localizados, dificilmente a córnea implantada no paciente será identificada como um “intruso”, o que reduz a probabilidade de rejeição”, explica o cirurgião à frente do Instituto da Visão de Curitiba (iVisão).
Composta por 5 camadas, a córnea representa uma extensa área do globo ocular, e, portanto, são diversas as motivações que podem levar à necessidade de um transplante. Dentre elas, estão possíveis traumas ou doenças oculares que alteram o seu formato, como o ceratocone – condição que afeta a estrutura da camada mais espessa da córnea, o chamado estroma, o qual assume um formato cônico e ocasiona o desenvolvimento de miopia e astigmatismo, que se agravam conforme o tempo.
Neste sentido, o avanço da tecnologia também contribuiu para modernizar o procedimento e torná-lo menos arriscado para os pacientes, principalmente, em relação às chances de rejeição do tecido transplantado. “Antigamente, quando a indicação de tratamento era o transplante, a única opção era o chamado “penetrante”, visto que a córnea era substituída em sua totalidade, independente de qual camada estava comprometida. Hoje, com o transplante lamelar, tornou-se possível substituir apenas a parcela que apresenta alguma deficiência, o que vem contribuindo para reduzir ainda mais as possibilidades de rejeição – as quais já eram incomuns”, esclarece.
A visão após o transplante
No que tange à recuperação, por se tratar de um procedimento ainda invasivo, o transplante de córnea permite a recuperação gradativa da visão ao longo de meses, variando de acordo com cada caso. Nesse período, devem ser evitados comportamentos de riscos que podem causar algum tipo de trauma nos olhos, além do constante acompanhamento pós-operatório com o oftalmologista e o controle com medicamentos imunossupressores para garantir a aceitação do novo tecido pelo organismo.
Sobre a qualidade da visão, o Dr. Marcello ressalta que, assim como na cirurgia de catarata, por exemplo, o transplante de córnea não se configura como uma cirurgia refrativa, ou seja, ele não busca eliminar o uso de óculos ou lentes de contato. “O principal objetivo do transplante é permitir que, com ou sem ajuda, o paciente consiga ter uma visão adequada. A correção ou eliminação do grau, por sua vez, exige outros tipos distintos de tratamento”, completa.
Lista de espera e a importância da doação
Outro fator que agrega vantagem ao transplante de córnea é o fato de que esse tecido possui maior resistência e durabilidade, podendo manter-se hábil para ser implantado até cerca de 6 horas após o falecimento de uma pessoa. Contudo, se por um lado a córnea possui características que facilitam o seu transplante e o próprio procedimento tem evoluído para uma operação tecnicamente mais otimizada, a complexidade da cirurgia parece estar mais associada às questões logísticas, éticas e emocionais relacionadas à lista de espera e à doação do tecido.
“Trata-se de um momento delicado, que envolve o luto e as emoções de familiares que acabaram de perder um ente querido. Mas cabe à equipe médica realizar essa abordagem da maneira mais acolhedora possível, ressaltando a relevância que a doação de um órgão pode fazer na qualidade de vida de outra pessoa.”, aponta o Dr. Marcello.
No Brasil, o banco de olhos é uma instituição nacional, embora regionalizada, de modo que cada estado possui uma fila própria. Para adentrar a lista de espera, o paciente deve, primeiro, passar pela avaliação do oftalmologista e a gravidade e urgência de cada caso pode impactar na posição ocupada na lista de pacientes que aguardam uma doação.
No iVisão, o transplante de córnea é realizado em um centro cirúrgico próprio, com uma média de 5 procedimentos mensais – número que foi afetado por conta da pandemia. Com a redução da incidência, internação e letalidade da Covid-19, a expectativa é de que as taxas de doações e transplantes aumentem nos próximos meses, reduzindo a fila de espera.