O leite é um dos alimentos mais consumidos globalmente, destacando-se por sua adaptabilidade na dieta humana, tanto em refeições cotidianas quanto em relação à utilização como ingrediente em diversas receitas (SCAQUETTE & SILVA, 2021). O leite é constituído por gordura, lactose, proteínas contendo aminoácidos essenciais, minerais (cálcio, fósforo, potássio e magnésio, por exemplo) e vitaminas (A, D, E e K, além de vitaminas do complexo B tais como riboflavina e cobalamina, dentre outras).

Apesar de sua relevância nutricional, o leite tem sido alvo de múltiplos ataques, principalmente nas redes sociais. Constantemente, especulações e mitos concernentes ao leite proliferam-se rapidamente, disseminando informações inverídicas. Este fenômeno ressalta a necessidade de um diálogo esclarecido sobre o tema, embasando cientificamente a população quanto às suas escolhas de consumo diárias.

Entre os diversos questionamentos suscitados na internet, uma das principais alegações difundidas em plataformas digitais pelos consumidores leigos e até mesmo por profissionais das áreas de alimentos e médica, é a ideia de que o leite e seus derivados apresentam um efeito inflamatório no organismo. Abordando essa e outras indagações, o objetivo deste artigo é fornecer informações científicas e atuais acerca do tema, vislumbrando responder à questão: afinal, o leite causa inflamação ou atua como anti-inflamatório?

O que é inflamação?

A inflamação é a resposta imunológica natural do organismo à uma lesão ou infecção. Existem dois tipos: aguda e crônica. A inflamação aguda é uma resposta imunológica de curto prazo, podendo ser desencadeada por agentes infecciosos, como bactérias ou vírus, agentes não infecciosos, como lesões e substâncias químicas, ou mesmo por fatores psicológicos, como estresse.

Em contrapartida, a inflamação crônica é uma resposta prolongada do organismo, que pode persistir por semanas ou até anos. Ao contrário da inflamação aguda, a crônica nem sempre é perceptível a olho nu. Pode ser motivada por diversos fatores, incluindo condições autoimunes, estresse crônico, exposição prolongada a poluentes, sedentarismo e determinados padrões alimentares. Quando o corpo humano enfrenta uma inflamação crônica contínua, isso pode levar a danos celulares e aumentar o risco de doenças como diabetes, cardiopatias, demência, depressão e certos tipos de câncer.

O leite e seus derivados causam inflamação?

Para indivíduos saudáveis, não há evidências robustas de que o consumo de laticínios cause inflamação no corpo. Entretanto, uma pequena parcela da população pode ser diagnosticada com alguma alergia à proteína do leite de vaca (APLV).

APLV ocorre quando o sistema imunológico do corpo reage negativamente às proteínas do leite e produtos lácteos, ativando uma resposta inflamatória que pode variar em gravidade, desde erupções cutâneas a problemas gastrointestinais e anafilaxia (CUTRIM, 2020). O tratamento requer evitar produtos lácteos, além de alimentos e bebidas que contenham ingredientes derivados do leite, devido ao risco de desencadeamento de reações alérgicas (MORAES, 2021). Nesse contexto, os rótulos alimentares desempenham um papel crucial ao identificar a presença de alergenos alimentares nos produtos, incluindo componentes do leite, auxiliando assim na prevenção de exposição acidental.

Um exemplo de APLV é a alergia à β-caseína, a qual apresenta 13 variantes distintas, sendo as mais comuns denominadas A1 e A2. A β-caseína A1, presente no leite comum, tem histidina na posição 67 da sequência de aminoácidos, enquanto a A2 tem prolina na mesma posição. Como consequência dessa alteração na sequência de aminoácidos, após a hidrólise da β-caseína A1, o peptídeo β-casomorfina-7 (BCM-7) é liberado, o que pode causar reações adversas em seres humanos, como alergia à proteína do leite. O leite A2, por sua vez, não produz o BCM-7 durante a digestão ou, se produz, resulta na sua forma inativa, o que indica que o leite A2 pode ser mais bem digerido (TAVARES, 2024). Este cenário cria uma oportunidade de crescimento do mercado de leite A2, incluindo a produção de derivados lácteos para um nicho consumidor específico.

Diferentemente da APLV, a intolerância à lactose é uma condição mais comum que se refere à incapacidade do corpo de digerir a lactose (Figura 1). A intolerância à lactose não é causada diretamente por uma resposta inflamatória, mas a inflamação pode ocorrer quando os sintomas se apresentam (CUTRIM, 2020; DECKER, et al., 2022).

Pessoas com intolerância à lactose são incapazes de produzir quantidade suficiente da enzima lactase que digere a lactose, e essa condição pode acarretar náuseas, distensão abdominal e/ou desconforto gastrointestinal após consumir lácteos. Nesse caso, o tratamento para a intolerância à lactose é evitar o consumo de produtos lácteos contendo este açúcar natural do leite. Logo, podem ser consumidos leite e derivados com baixo teor de lactose como queijos maturados (parmesão, por exemplo) e leites fermentados, dependendo do grau de intolerância do consumidor; produtos delactosados, nos quais a lactase é adicionada ao produto durante o processo de fabricação; ou ainda o indivíduo intolerante, após diagnóstico médico, pode tomar suplemento de lactase ao consumir produtos lácteos.

E o contrário: o leite atua como anti-inflamatório?

Nos últimos anos, o debate sobre os efeitos do leite e seus derivados na saúde humana vem ganhando destaque nas discussões em redes sociais e pesquisas acadêmicas. Valorizando as descobertas científicas e refutando as “pseudociências lácteas”, destaca-se o impacto potencialmente benéfico dos produtos lácteos sobre marcadores inflamatórios no corpo humano.

Para demonstrar o potencial efeito anti-inflamatório do leite, utilizaremos como base a revisão sistemática intitulada de “Milk and Dairy Product Consumption and Inflammatory Biomarkers: An Updated Systematic Review of Randomized Clinical Trials” publicada em 2019 pelos autores ULVEN S.M., HOLVEN K.B., GIL A. e RANGEL-HUERTA O.D., na revista internacional “Advances in Nutrition”. Este trabalho abrangente examinou as evidências mais recentes de ensaios clínicos randomizados para determinar o papel anti-inflamatório do leite e seus derivados.

De acordo com o trabalho citado, em geral, o consumo de leite e derivados não demostrou efeitos pró-inflamatórios nos grupos estudados. Surpreendentemente, a maioria dos estudos indicou um efeito anti-inflamatório em indivíduos saudáveis e especialmente naqueles com condições metabólicas pré-existentes.

Particularmente, um dos estudos focou em indivíduos com síndrome metabólica (obesidade, diabetes e hipertensão, por exemplo), onde o consumo regular de iogurte enriquecido com probióticos foi associado a uma redução nos níveis do fator de necrose tumoral alfa (TNF-α), uma citocina pró-inflamatória. A redução observada nos níveis de TNF-α após 12 semanas de consumo regular do iogurte probiótico ressalta o potencial terapêutico dos produtos lácteos fermentados. Esse resultado sugere que os probióticos presentes no iogurte podem ter um papel fundamental na redução da inflamação sistêmicaem indivíduos com condições inflamatórias pré-existentes.

Outro estudo analisou o impacto do leite desnatado em adultos saudáveis, observando efeitos variados nos níveis de interleucina-6 (IL-6) entre os participantes. Enquanto alguns indivíduos mostraram uma redução modesta neste biomarcador inflamatório, outros não apresentaram mudanças significativas, o que destaca a importância de considerar fatores individuais como genética e condições de saúde no momento de avaliar os benefícios do consumo de leite. Adicionalmente, um estudo sobre indivíduos com sobrepeso e obesidade relatou uma diminuição notável em IL-6 com o consumo regular de produtos lácteos. Este resultado é substancialmente importante, pois sugere que o leite e seus derivados podem desempenhar um papel benéfico na mitigação da inflamação associada a essas condições metabólicas.

Outros estudos apresentados na revisão sistemática destacaram o papel dos componentes bioativos presentes nos produtos lácteos, como ácidos graxos, lactoferrina, imunoglobulinas e peptídeos bioativos, na modulação dos processos inflamatórios. Esses componentes têm sido reconhecidos por suas propriedades funcionais, especialmente a lactoferrina, que é notavelmente reconhecida por suas capacidades anti-inflamatória e imunomoduladora.

A lactoferrina é um dos componentes mais estudados em relação aos efeitos anti-inflamatórios dos produtos lácteos. Esta glicoproteína, abundante no colostro e no leite de vaca, bem como no leite humano, tem mostrado eficácia na inibição de citocinas pró-inflamatórias, como o TNF-α, e na estimulação de citocinas anti-inflamatórias, como a interleucina-10 (IL-10). Esse mecanismo de ação contribui para um ambiente menos inflamatório e mais propício à homeostase imunológica.

As imunoglobulinas encontradas nos produtos lácteos desempenham um papel importante na defesa imunológica. Elas podem neutralizar patógenos e toxinas, reduzindo assim a carga inflamatória e a necessidade de uma resposta agressiva por parte do sistema imune. Essa ação preventiva é essencial para manutenção da integridade do sistema imunológico e saudabilidade em geral.

Os peptídeos bioativos derivados da digestão de proteínas do leite possuem uma variedade de efeitos imunomoduladores e anti-inflamatórios. Esses peptídeos podem interferir em vias inflamatórias, reduzindo a atividade de enzimas ou bloqueando os caminhos de sinalização envolvidos na inflamação. Tais efeitos ajudam a atenuar as respostas inflamatórias e podem ser particularmente benéficos em condições crônicas.

Os ácidos graxos, em particular o ácido linoleico conjugado (ALC), exercem funções na modulação da inflamação. Reconhecidos por suas propriedades terapêuticas, esses compostos desempenham um papel significativo na conclusão dos processos inflamatórios agudos, contribuindo assim para prevenir a cronicidade da inflamação.

A combinação de diversos componentes bioativos nos produtos lácteos não só oferece benefícios nutricionais, mas atua sinergicamente para influenciar positivamente a saúde dos consumidores. Essas descobertas reforçam a importância de incluir produtos lácteos na dieta, não apenas por sua densidade nutricional, mas também por seu potencial terapêutico no tratamento e prevenção de doenças inflamatórias crônicas.

Conclusão

O debate em torno do leite e seus derivados revela uma intersecção complexa entre cultura alimentar, fake news, saúde e ciência. Embora as redes sociais tenham se tornado um terreno fértil para a disseminação de mitos e teorias conspiratórias, é imperativo reconhecer que o leite, em sua essência, é um alimento com alta qualidade nutricional. Diante da proliferação de informações conflitantes, é fundamental discernir entre a especulação infundada e a evidência científica sólida.

Avanços científicos têm ressaltado o potencial terapêutico dos produtos lácteos na modulação da resposta inflamatória a diversas doenças. Estudos recentes apontam para os efeitos benéficos de componentes bioativos, como lactoferrina, imunoglobulinas, ácidos graxos e peptídeos bioativos, na redução de inflamações e no fortalecimento do sistema imunológico. Logo, as indústrias de laticínios, destacando-se o setor de marketing, devem incentivar os consumidores a fazer escolhas informadas, considerando os benefícios nutricionais e terapêuticos dos alimentos, além dos seus aspectos relacionados à sustentabilidade econômica e ambiental.

Compreender o leite vai além das polêmicas nas redes sociais. Trata-se de reconhecer sua importância na alimentação humana, complexidade nutricional e potencial para promover a saúde. É por meio de um diálogo franco, baseado em evidências comprovadas, que as “pseudociências lácteas” serão refutadas e o consumidor será cada vez mais valorizado.

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Agradecimentos

Os autores agradecem o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais – FAPEMIG.

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O leite causa inflamação ou atua como anti-inflamatório?