A profissão de cronista é um trabalho à parte, distante do mundo. Nenhum grande acontecimento rege a sua presença de observador do cotidiano. Solidão e distanciamento marcam a caminhada de quem escreve sobre a banalidade da vida. Nada de câmeras e holofotes. Sua existência está única e exclusivamente na escrita, e com sua máquina de escrever ele se defende como pode.
A cidade é seu grande laboratório. Nela, ele realiza suas experiências criativas, sem nunca alcançar o grau derradeiro da realidade, porque uma crônica é e sempre será apenas o retrato de um instante, fotografia em palavras daquilo que os homens, em seu ramerrão, são incapazes de verificar, por conta de suas obrigações a cumprir e contas a pagar. A paixão pela solidão é o que leva o cronista a buscar o mundo, sem o qual ele não seria mais do que um melancólico cliente de padaria que apenas vê e nada diz.
É possível que existam gentes nessa condição, de alma triste, observando os acontecimentos, porém incapazes de dizer algo devido a uma provável eloquência muda. Então a boca se cala, e a pessoa se torna um tipo de autômato em meio à multidão, por puro desespero na sua quietude de desencantado.
Eis alguém que se aproxima muito da condição metafísica do cronista, que também desespera – porque todos os cronistas são mais ou menos desesperados -, mas, ao contrário do homem que sofre calado o desencanto de viver e sofrer, o escritor de miuçalhas, o autor que descreve o invisível, não perde o encanto diante do inevitável.
Pelo contrário, ele ainda carrega uma centelha de esperança na palavra, seu único instrumento para colorir o sofrimento, como se fosse um artista do pincel a preencher uma tela branca, ou um pianista a compor uma nova peça. Escrever é pintar a tristeza, dar-lhe cores e som, no silêncio do quarto, durante a madrugada. Quarto cheio de palavras, de cores e de melodias, em que tudo termina com o raiar do sol, e logo a rotina retoma o seu lugar, quando o escritor dá lugar ao silêncio de mais um dia. E nesse novo dia que se inicia, ele apenas vê as coisas com olhos de quem caça sua próxima presa, pois o cronista é fera faminta, em busca do alimento do cotidiano, digerindo os fantasmas que rondam as trivialidades do vão orgulho humano na terra.
Um casal atravessa a avenida central, um vendedor de cocadas está parado na esquina, chineses se aglutinam numa loja cheia de quinquilharias, mais um fiel sai da missa, os colegiais tomam refrigerante na lanchonete perto da escola. É possível ver a lua em plena luz do meio-dia. Faz frio, um mendigo dorme enrolado em sacos plásticos, o jornalista redige a próxima notícia, o rádio informa o horário de Brasília, alguém está deitado no sofá relembrando uma velha melodia. Uns nascem, outros morrem, e assim segue o trem em que somos transportados, até a próxima estação, onde alguém desce para nunca mais voltar.
E os radares da crônica permanecem ligados, atentos ao menor ruído, que será relatado como uma explosão de bomba atômica em qualquer canto, em qualquer lugar, pela verve do cronista, que de tão desconhecido e embaçado, já se assemelha ao retrato empoeirado das bisavós na escrivaninha: ignorado, esquecido, apagado e antigo. Seu ofício é sacerdócio cuja bandeira é lucidez e transparência. Nada se esconde na tarefa em que as ferramentas transpiram: palavras suadas, roubadas, conquistadas em terras estrangeiras, na dura batalha contra o inimigo da solidão e do abatimento.
E, não obstante, o cronista não sustente coisa alguma, a crônica lhe basta. Essa é sua cruz que lhe ilumina em meio ao anonimato da via sacra de salvador que nada salva, pois não é herói, mártir ou poeta. Ele não vê além – ao contrário de Rimbaud, não é vidente -, apenas vive o aqui e agora, na horizontalidade humana citadina.
Essa é sua filosofia, sua ontologia, do banal que também é vida, aquém de si mesmo, de joelhos numa cantilena sem fim, a rascunhar a caricatura de outrem num simples gesto milenar. Toda sua ritualística está no texto. Fora dele, ele não existe. O cronista não existe fora dele mesmo. Não pode. Ele é o texto. Encarnado em todos e em ninguém, ele é o vazio que se preenche e nunca termina, porque sempre transborda fósforos frios, dos quais sai a fumaça da criação.
E então uma nova crônica nasce e, assim, começa outra vida.
Esse é o trabalho de parto do cronista.