Não havia razão para que ela sofresse. Sua família era abastada, dona de propriedades e indústrias no interior. Estudara nas melhores escolas da capital, era doutora em literatura e não precisava trabalhar. Possuía várias joias caríssimas, e os homens viviam aos seus pés. Mesmo assim, ela sofria.
Saía aos finais de semana de carro importado, encontrava as amigas nos pontos mais badalados da cidade, era bonita e sempre aparecia nas colunas sociais. Muitas mulheres da região desejavam levar a vida que ela tinha. Mas Estela não era feliz. O luxo com o qual estava acostumada não preenchia seu interior. Sua alma era vazia.
No início de seus vinte anos, essa questão não lhe importava muito. Ela apenas aproveitava sua juventude. Agora, porém, chegava aos trinta anos e se via sozinha no mundo. Todas suas amizades e amores eram por puro interesse. Faltava-lhe autenticidade no convívio social. “Será que se eu fosse pobre as coisas seriam dessa maneira?”, questionava-se Estela.
Ela já não era mais a beldade de dez anos atrás. Muitos se afastaram de sua companhia, e as pessoas que restavam em sua vida ainda buscavam alguma oportunidade de conseguir, por meio de amizade dissimulada, galgar uma posição social. Estela tinha plena consciência disso e, se mantinha contato com certas “amizades”, era apenas para ter com quem conversar.
A família há muito tempo notava essa mudança na vida da moça e pensava em lhe enviar para a Europa com o intuito de que ela fugisse um pouco daquela falsidade interiorana em que se encontrava. Mas Estela não queria visitar lugar algum. Preferia passar os dias na mansão a viajar para qualquer parte do mundo.
Estela passava longas horas a pensar em sua existência privilegiada e sem sentido. “Por que não sou mais feliz? Será que eu fui feliz alguma vez em minha vida de menina mimada?”. Então, se lembrava do início de sua vida adulta, da mentira que era aquela depravação em que vivia no começo de sua saída de casa para cursar faculdade na capital…
Estela estava sentada na poltrona de seu pai enquanto relembrava sua miséria moral. Seus olhos azuis, cheios de lágrimas, conferiam-lhe uma beleza singular: ela era, naquele momento, uma estrela que se apagava. O barzinho na sala de visitas estava repleto de bebidas. Ela pegou uma garrafa e entornou de um só gole um copo de conhaque francês tão envelhecido como ela, com a diferença de que a velhice da bebida era cronológica, e a de Estela, existencial.
Lá fora chovia forte. As folhas das árvores eram levadas pela enxurrada. Estela liga a vitrola, que começa a tocar As Quatro Estações. E nas melodias de Vivaldi ela se deixa levar, consubstanciando-se à composição. Aquela era a trilha sonora de seus anos perdidos. Estela toma mais uma dose de conhaque…
Enquanto ela sorve o líquido do copo, embalada pela música, uma série de imagens se estilhaçam em sua memória. Não há mais amor, apenas solidão. Ela olha para a janela quando então um pássaro adentra sua sala. A ave parece meio perdida. Estela levanta-se da poltrona para botar o bichinho para fora. Sem muito esforço, o pássaro se vai, deixando cair uma pena que flutua próxima ao abajur.
Estela agarra aquela peninha. É uma pena leve. Não há mais voo para aquele pedaço de pluma que se soltou. A pena da ave nunca mais voará. Estela volta a se sentar e pressente como a existência é leve e pesada. Ela bebe de um só gole mais uma dose de conhaque. É o fim do sonho, assim como foi o fim daquela pluma. Estela volta para sua solidão com a sua pena…