Tem aquelas histórias que a gente prefere deixar no passado, de preferência, em baú que se perde a chave e que não carece abrir tão cedo devido ao constrangimento. Foi assim que o seu João fez com uma história de aventura de anos corridos. Ele passava de garotão para homenzinho quase crescido e já andava de olho na Tininha, filha do meio do casal de vizinhos. Era colega de brincadeira de rua, de esconde-esconde, de subir em goiabeira, de apartar bezerro no curral e de ir à missa de domingo e cantar os versos para o Santíssimo.
Pois foi lá pelos seus dezesseis anos de idade que ele percebeu a menina de outra forma, ou melhor, percebeu as formas da menina. Depois do dia corrido, Joãozinho ia dormir no quarto que dividia com mais dois irmãos e não tirava a mocinha da cabeça. No começo até achou que era implicação dele, coisa de moleque mesmo. Uma briguinha à toa aqui, outra acolá, e depois acabavam ficando de mal por um ou dois dias. Mas não, a tal da menina já lhe roubava o sono e entrava nos seus sonhos como o sol penetrava nas frestas da casa de madeira.
Um dia olhou-se no espelho e percebeu que estava meio desajeitado para tentar uma investida mais atrevida. Pensou e decidiu juntar as moedas da gaveta e chamar a menina para um sorvete. Trocou os chinelos de dedo pela botina e o calção azul de elástico pela calça rancheira que tinha ganhado da tia e que nunca se atreveu a usar porque, segundo ele, pegava nas partes de baixo e dava sufoco. Para ficar mais à vontade não vestiu a cueca por baixo.
Passou um pouco da brilhantina do pai que ficava sobre o armário do banheiro e ajeitou a franja na testa. A camisa de ir à missa aos domingos deu o arremate geral. Era branca, cerzida pela mãe no colarinho pra esconder o desgaste de tanto esfregar o amarelão, um misto de suor com poeira de bom tempo de uso.
Agora vinha a parte mais difícil. Primeiro passar pelos dois irmãos e ter que agüentar a gozação pelo novo figurino. Depois disso, bater na porta da casa da menina e chamar para o sorvete, o que na intenção dele seria um bom início de uma futura e promissora relação. Depois de passar pela gozação dentro de casa respirou fundo e partiu. Antes disso, a mãe que já observava tudo de longe e conhecedora das suas intenções, deu-lhe mais uns trocados para ajudar na empreitada.
Chegando lá bateu na porta de madeira com tanto medo que não foi ouvido. Insistiu e bateu com mais força. A porta se abre e ele quase cai de costas. Seu Vicenzo, pai da italianinha, conhecido na vizinhança como “toco de açougue” pela falta de educação no trato com as pessoas e também com a própria família, foi quem lhe recepcionou.
Olhando de baixo para cima o italiano parecia ter uns três metros de altura, barba por fazer, camisa encardida e aberta no peito coberto de pelos brancos e eriçados que mais pareciam um cacto. Na cintura, um punhal de ponta fina que usava para picar o fumo de rolo quando ficava sentado na venda para tomar uns goles e dar umas baforadas.
A cena era assustadora. Um suor frio brotou na testa de Joãozinho. Ele sentiu que a coisa azedou e, apavorado, deixou escapar um peido que mal sabia ele, já era o prenúncio da borrada que se seguiu e lhe encheu as calças e as botinas.
Passou da cor branca para a amarela em menos de cinco segundos. Quando ouviu do italiano vecchio um sonoro “coche qué aqui, ô moleque?” Não teve dúvidas. Enfiou a mão no bolso, pegou os trocados, entregou e foi logo dizendo: “Nada não. A mãe só mandou pagar as costuras que a sua patroa fez pra ela e já ‘tô’ indo embora”.
Voltou correndo pra casa, assustado, cagado, e ainda por cima sem o dinheiro e sem o sorvete que tanto queria. Tomou um banho, vestiu o velho calção azul e jogou a roupa suja no tanque resmungando com a vida. “Bem que o vô falava. Essas coisas de ‘muié’ são complicadas. Mais dá trabalho e desarranjo do que solução. Vou largar é mão disso”.
Foi assim que o assunto quase morreu, não fossem os irmãos espalharem pelo vilarejo no dia seguinte que a casa ficou cheia de rastro das botinas sujas e que a calça só voltou pra gaveta depois de muita lavação.
Hoje ele mora em outra cidade e tem um comércio de beira de estrada. Não se sabe como, mas o armazém ficou conhecido como Venda do Joãozinho pé de bosta, genro do toco de açougue. Quando perguntado sobre o assunto a resposta vem na lata: “Deixa quieto. Mexe com isso não! É coisa de invejoso e de gente que não tem o que fazer”
Ivan Evangelista Jr. é membro da Comissão de Registros Históricos de Marília