Embora seja a oitava maior economia do planeta, o Brasil padece de sérios problemas de sanitarismo, transporte e habitação. Todos já eram evidentes há décadas e apontavam para um desenvolvimento urbano aquém do que o país necessita.
A pandemia ocasionada pelo novo coronavírus, no entanto, escancarou a falta de planejamento nas cidades, evidenciou o despreparo da gestão pública e deu ainda mais luz a desigualdade social. O Brasil 61 conversou com especialistas para fazer um diagnóstico da situação e apontar para possíveis soluções para um país que vai precisar se reinventar após a emergência de saúde pública.
Tomas Alvim coordena o Laboratório ArqFuturo de Cidades, do Insper, que estuda evolução urbana no mundo por meio de várias ferramentas, entre elas dados georreferenciados e métodos analíticos.
A ideia é ir além das abordagens tradicionais do urbanismo, que já se encontram ultrapassadas no Brasil, propor inovações e projetos de arquitetura e urbanismo com o objetivo de contribuir para a melhoria do ambiente construído, da gestão e da qualidade de vida nas cidades.
O especialista acredita que os nossos centros urbanos crescem mal, com problemas de segregação, poluição e mobilidade. E a pandemia trouxe o fim da invisibilidade de uma realidade que é inaceitável e que agora não pode ser mais ignorada.
“A tal população invisível que a gente não via e, de repente, apareceram mais de 40 milhões de pessoas a mais para pegar os auxílios do Governo Federal, que não estavam em cadastro nenhum, mostra muito o que é essa invisibilidade das cidades. Saíram da invisibilidade uma massa de pessoas morando em condições absolutamente inaceitáveis, sob qualquer ponto de vista”, ressalta Alvim.
Segundo o coordenador do laboratório, a realidade de grandes centros urbanos do país se mostrou ainda mais precária durante a pandemia, com indicadores de vulnerabilidade que passam por saúde, saneamento, educação, mobilidade, entre outros. “A primeira coisa que a pandemia nos obriga a fazer é rever essa metáfora de cidade que a gente tem. Agora nós estamos pagando o preço dessa precariedade. Enquanto controlamos a pandemia nas áreas mais desenvolvidas da cidade, estamos vendo a dificuldade de exercer esse mesmo controle em populações com outras condições socioeconômicas que não conseguem fazer o isolamento ou questões relacionadas ao saneamento básico”, destaca. “Não podemos ser um país que é a oitava maior economia do mundo e que tem 100 milhões de pessoas sem acesso a saneamento, 35 milhões de pessoas sem acesso à água potável.”
Repetição dos erros
As cidades deveriam promover a equidade, principalmente em relação à inclusão da maior parcela da população. O que acontece no Brasil, no entanto, é um crescimento desordenado dos centros urbanos. Segundo estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), nos últimos nove anos observou-se um aumento substancial de Aglomerados Subnormais, ou seja, áreas residenciais cujas as populações apresentam condições socioeconômicas, de saneamento e de moradia precárias, além de uma densidade de edificação elevada, o que se mostrou um problema para o isolamento social e ajudou a disseminar a Covid-19.
Os Aglomerados, popularmente conhecidos como favelas ou comunidades, eram pouco mais de 6.300 em 2010 e estavam presentes em 323 municípios brasileiros. Em 2019 esse número saltou para aproximadamente 13.150, ocupando 734 municípios. Segundo o IBGE, isso totaliza mais de 5,1 milhões de residências, ou quase 8% dos domicílios brasileiros.
“Nossas cidades crescem e crescem mal. E não é um problema só das grandes cidades, pois os pequenos e médios municípios repetem os mesmos problemas. Você desenvolve uma cidade e não atenta para questões de infraestrutura básica como saneamento, água potável, coleta de lixo, e nem para as questões das condições de moradia”, alerta Alvim.
O especialista explica que as cidades aprenderam, após a era da industrialização, a combater as epidemias, mas que se esqueceram disso com o tempo e hoje estão perdendo essa batalha. “Hoje elas são produtoras de exclusão sócioespacial. A classe alta está levando a cidade para dentro do condomínio e a classe pobre está indo morar cada vez mais longe do trabalho, em locais sem infraestrutura e, muitas vezes, sem governança. A gente mesmo produziu o pior cenário.”
Reversão do quadro
A criação da medicina urbana veio junto com a melhor estruturação das cidades e a percepção de que o saneamento básico deveria existir em todos os lugares. Já nos anos 1800 ingleses e franceses sabiam que isso era primordial para combater as epidemias que à época dizimaram milhares de vidas. Segundo Alvim, o crescimento desenfreado e desorganizado no Brasil regrediu nesse sentido e a pandemia atual mostrou, de forma mais enfática, a necessidade urgente de ações mais bem estruturadas.
“Se você tem um país que é essencialmente urbanizado, você tem de fazer uma agenda que priorize reverter esse quadro com políticas públicas efetivas e transformadoras dessa realidade. Tudo o que a gente produziu num passado recente no Brasil só fez aumentar essa exclusão, essa segregação. A gente tem de produzir cidades em que as pessoas possam estar mais perto do trabalho, dos serviços públicos, dos equipamentos, da qualidade de vida. Já era uma questão latente antes da pandemia e, agora, é ainda mais notória”, pontua.